segunda-feira, 4 de julho de 2011

Rará- ceci-reoró

“Vago”. Assim, Iraci sempre se referiu ao meu nome. Devorava as sílabas das palavras da mesma forma com a qual atropelava as palavras das frases que soltava no improviso. Seu próprio nome tem soletração típica: Rará-ceci-reoró.

Iraci não era cantora, mas não se cansava de improvisar repentes, principalmente no compasso em que tentava ludibriar os clientes dos bares em que se metia a pedir mais uma dose de cachaça. Figura mais icônica que essa mulher, nunca se soube pelos arredores dos povoados circunvizinhos ao da Cavada.

Com o preço do valor de um copo de pinga, sempre na ponta da língua, Iraci ignorava outro número: a sua própria idade. Os habitantes mais antigos da região, que lembram de Iraci quando moça calculam que a mulher mais famosa esteja beirando os 70.

Há anos, para não dizer décadas, Iraci deu sumiço em seu RG, por isso nunca desfrutou o dinheiro que poderia usufruir com o benefício da aposentadoria. Teve três filhos homens. Todos caíram no mundo. Dois se bandearam para São Paulo, enquanto o caçula continua por lá, onde, hora ou outra, visita a mãe.

Iraci é amasiada com Zé Bufão. Tão irreverente quanto a companheira, o baiano não dispensa uma pinga. Juntos, pareceram ter nascido um para o outro: no vício ao álcool e à companhia inseparável.

Iraci quase sempre perde as estribeiras, quando o efeito da cachaça lhe soube à cabeça. Dispara palavrões e pragas àqueles que não foram complacentes para com ela; àqueles que não lhe deram uma nica ou não lhe pagaram uma "branquinha".

Desde pivete, cresci convivendo com essa mulher de sobrenome e idade desconhecidos. Avistando seus cabelos sempre grisalhos, hora ou outra, ela apontava lá em casa. Do portão, bradava meu nome com as sílabas deturpadas. Aparecia com sacolas abarrotadas de chuchu, feijão verde, ora mamão e banana da terra. Cada embrulho não passa de R$ 2 (valor equivalente a um litro de cachaça, na época). Embora eu soubesse da mentira, insistia: "É pra comprar de pinga, é?". A resposta de Iraci saía quase dramática: "Não, Vago, não!".

Depois que conseguiu casa própria, obtida pela Prefeitura, uma luz surgiu em seu caminho: a luz elétrica. Doze meses depois de aposentar o candeeiro, ressuscitou o utensílio por não pagar a dúzia de talões à Coelba (Companhia de Eletricidade do Estado da Bahia). A casa ficou ainda mais turva por causa da fumaça do fogão a lenha, sem chaminé.

Presença garantida nos forrós, Iraci deixava sua marca por meio dos passos desengonçados que agitavam as festas na região. Muitas foram as vezes em que ela aparecia com os cabelos coloridos. Tons brancos e amarelados criavam uma coloração típica de uma tintura que, de fato, não havia dado certo. Miúda, Iraci não passava de 1, 60 m. Sem recato, não fazia a mínima questão de encobrir suas pernas cheia de varizes finas. Gostava de saias e blusinhas curtas. Nos pés calejados, o par de havaianas era seu calçado mais duradouro.

Passei da infância à adolescência, e hoje à fase adulta, vendo aquela mulher xingar, sorrir, cantarolar, cambalear e, principalmente, entornar aquele que parece ser seu principal combustível. Ela simplesmente não mudou. Conserva as mesmas dobras no rosto, a mesma brancura no cabelo, o mesmo repertório de palavrões e a paixão pelo álcool, que garante sua literal sede de viver.

Imagens: Iraci - janeiro de 2011 (Povoado Cavada II (BA)

Um comentário:

Wadila de Alencar disse...

kkkkkk Lembranças!


Até bateu uma saudade de Iraci, hehehe Ela é uma mulher tão inesquecível, que até hoje aqui em São Paulo, me lembro dela e apelidei minha amiga Jessica de Iraci, quando ela bebe d+ kkk