segunda-feira, 23 de janeiro de 2012

Era uma vez a minha casa


Minha extinta casa, no Povoado Cavada II

O que era uma casa erguida, agora são dezenas de tijolos de barro empilhados uns sobre os outros. Ali havia seis cômodos: sala principal e de estar, cozinha, dois quartos e um banheiro – todos modestamente simples e pequenos. Hoje, a propriedade dá espaço às lembranças de um lugar onde passei os primeiros anos de minha vida.

Era uma vez essa casa... A minha casa: com um pé de goiaba no rumo da cozinha, logo nos fundos; na frente, uma árvore cheia de espinhos e flores avermelhadas e na lateral, uma rocinha de café.

Era uma vez essa que foi a minha primeira aonde meus pais se mudaram assim que se casaram, o recanto onde fui gerado e onde aprendi a dar meus primeiros passos.

Ali vivemos dez anos de nossa vida. Na casa de telha eternit muitas vezes quebrada pelas bolas de futebol que vinham do vizinho – o campo de futebol. Ali recebemos os amigos e parentes. Instalamos energia elétrica "puxada" da casa do meu tio; só não nos poupamos de buscar água no rio. Moramos perto da nascente aonde tomávamos banho, ora ou outra. Ali compramos pela primeira vez também uma televisão colorida, plantada na estante de madeira legítima.

Aquela era nossa casa, exatamente assim, no pretérito perfeito. Enquanto erguida nos rememorava às lembranças de quando naquele canto nos instalamos durante anos a fio de nossas vidas, onde se criaram três dos cinco irmãos.

Agora não passa de um terreno com uma porção de blocos, sem a grama que plantamos desde as laterais, onde foi fincado um jardim com roseiras, cravos e margaridas, onde, pela janela, ei avistava minhas tias carregaram sobre a cabeça as roupas lavadas no rio e meus primos com suas bolas sob o braço a caminho do campo. Ali onde eu cresci. 

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Esta crônica faz parte da série "Cafés baianos", que conta as histórias de pessoas e dos povoados da cidade de Barra do Choça (BA) - cidade em que nasci e vivi alguns dos anos mais felizes de minha vida.

terça-feira, 17 de janeiro de 2012

O oceano de Marli

Aquela menina de cabelos rebeldes e pele amorenada sonhava tornar-se professora. Jeito para o ofício não lhe falta. Dias prósperos de um futuro promissor pareciam levar Marli ao fardo do sucesso.  


Inteligência era palavra em abundância no vocabulário de sua vida. Aos 11 anos, atingia a quinta série - feito inalcançável pela maioria, que perdia o prumo dos estudos, ora pela reprovação, ora pela troca da sala de aula nos períodos em que a lavoura de café renderia um poupado ordenado no final da colheita. Tudo ali, na região do Capão Verde, povoado ao sudoeste da Bahia. 


Na sala de aula, qualquer conteúdo era dominado com facilidade pela baiana do sorriso farto de dentes brancos. Os trabalhos escolares eram impecáveis. A temida matemática parecia não ter vez com a gargalhada aguda de Marli. O ensino médio foi desbravado com facilidade por ela: a dona das notas mais altas da turma.

Mas o mar tornou-se rio, assim que Marli careceu largar os ainda intangíveis estudos superiores para, naquela ocasião, aprender o bê-a-bá do matrimônio e, em seguida, da maternidade. Aos 19, se casou; antes de completar uma vintena de anos deu à luz a sua primeira herdeira.

Os braços que carregariam os livros da tão sonhada licenciatura se trasladaram ao balanço de Iasmim e à incumbência dos ofícios domésticos. De estudante universitária, Marli converteu-se à dona-de-casa, depois, com a necessidade de um serviço remunerado, asseverou a sonhada sala de aula: mas não com o posto de educadora, e sim como faxineira, mais tarde, na função de merendeira.

Marli está afastada de seus sonhos, apaziguados pelas dificuldades de habitar em um lugar onde se respira muito mais que o ar puro, mas as amargas restrições.

E mesmo que transporte no nome o prefixo da palavra que analogicamente representa o infinito, o mar dessa baiana contraria-se aos seus dias que são todos iguais. Seu sorriso bravo não sentencia os dias mansos: enquanto faxina a casa, ela canta no ritmo da música alta que invade os cômodos. E o suor que escorre de seu corpo não afoga seu sonho, embora ainda em teoria, – porém felizmente – ela cultiva e, a seu modo, persegue as esperanças da menina que mais do que querer ensinar, está cotidianamente aprendendo a viver.

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Esta crônica faz parte da série "Cafés baianos", que conta histórias de pessoas e lugares dos povoados da cidade de Barra do Choça (BA) - cidade a qual vive durante muitos anos da minha vida.

quarta-feira, 11 de janeiro de 2012

Amanhecendo na roça



Depois do almoço, Zé prepara o alimento aos seus quatro cachorros. Diamante é um membro da matilha: o seu cão-panheiro,  o canino com o qual adentra as matas em suas caçadas rotineiras. Arroz, feijão com farinha regado a óleo de soja ou caldo de carne cozida. O filhote é alimentado dentro de casa. Ali mesmo, na cozinha, estira a comida com a forma de um montezinho. Os cães ficam do lado externo, e para que a briga não aconteça, Zé também edifica mais dois morrinhos. As galinhas se aproximam, a fim de beliscar um pouco da refeição. Com uma vassoura, o dono da cachorrada tange as aves, que minutos depois engolem os restos inalcançáveis pelos caninos.

O almoço acontece entre 11h30 e 12h30, quando o patriarca da casa chega, depois de trabalhar cinco horas. Zé está rebocando a residência recém levantada por outro pedreiro. Lá, trabalha ‘por dia’, e pela diária de oito horas embolsa 20 reais.

Vera, como a grande maioria das mulheres na região, é dona do lar. É ela quem vigia os quatro filhos, as galinhas, os cachorros, os gatos e os passarinhos. Na casa deles há poucas gaiolas; quatro no total. Enquanto noutros domicílios esse número alcança a marca de, no mínimo, meia dúzia.

É assim na casa de dona Aliça. Há rolengos, sabiás, estraladores e coquis. Sem aparelho de som, é o barulho do galo e dos passarinhos engaiolados que quebram o silêncio do vazio.

Na cozinha, há uma sabiá-verdadeira prestes a mudar de cor. O colorido dá vida ao pássaro depois de certa idade. No tempo em que dona Aliça cozinha, a ave cantarola sem pudor. À tarde, como de praxe, verifica se o marido fechou o poleiro. É lá que as aves dormem quando a noite desmonta; quando o sol está nascendo é ela mesma quem se encarrega de abrir a casa das aves e alimentá-las mais tarde.

É assim, a cada novo amanhecer.

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Esta crônica faz parte da série "Cafés baianos", que conta histórias de pessoas e lugares dos povoados da cidade de Barra do Choça (BA) - cidade a qual vive durante muitos anos da minha vida.

sexta-feira, 6 de janeiro de 2012

As dores crônicas de Maria

Ilustração Thiago Calle

Ela está mais magrinha desde a última vez; dos 59 quilos, somente 45 deles lhe suportam o peso do corpo revestido por uma pele morena escura já penalizada pelo sol de cada dia. Maria está em casa, no lugar que deveria chamar de lar doce lar, mas agora recebe o nome de prisão.

Nas paredes persiste a mesma coloração de sempre: o turvo da fumaça do carvão expulsa pelo fogão a lenha. Na saleta, os enfeites acomodam-se junto aos aparelhos de rádio ainda movidos a fita cassete, os televisores sem funcionamento e o portarretrato da formatura do ensino médio da filha. No chão do piso “queimado” de vermelho restam as derradeiras e poucas pegadas de quem passou pelo casebre com mais dois quartos pequeninos.

Maria segura os cabelos rebeldes e examina-os, contrariada; sente a ausência das tranças que dia antes compunha seu penteado. Em seu terno desejo, as madeixas seriam alisadas, espichadas por um secador. Contudo, em sua realidade cotidiana, é um mero elástico de borracha quem desmazela sua imaginação e aprisiona os cachos crespos.

Ela está sentada no sofá penitenciado pelo tempo – o mesmo tempo que também a castigara. Nos olhos afundados no rosto fino, ela esconde os dias em que as risadas saiam mansas e pulavam gratuitamente de sua garganta. Ela ajeita nos ombros a blusa verde de alcinha que já suporta não o peso de seu tronco, mas de seu constante pesar.

Maria admite não estar bem, embora – e infelizmente – transpareça claramente em seu semblante. Toda vida reclamara das dores: as enfermidades físicas têm acompanhado seu destino há um bocado de anos; ora o bico de papagaio, quando não as dores de cabeça e nas pernas.

A dois anos para alcançar os 40 anos de idade, Maria cultiva as memórias desgastadas, enfraquecidas pelas preocupações e tristezas, suas principais companhias. O companheirismo do matrimônio perdera o vigor da época em que era uma ligação sem melancolias e estorvos.

Pertencer ao evangelho é outra sobrecarga para Maria. Afinal, como pode transportar consigo o pecado? E ele atinge seus pensamentos (já feridos) quando os desejos lhe tomam. A cerveja noutras ocasiões matara sua sede, hoje em dia lhe é velada. Assim como o álcool, não lhe são mais permitidas as calças compridas e a tintura na cara, mas a imposição do barulho das caixas de som durante a pregação na Assembleia de Deus, todas as terças e quartas-feiras.

Maria encontrou o caminho do médico onde recebera drogas para frear os pensamentos que lhe têm perturbado. O doutor garantiu trazer-lhe o sono, enquanto a bula expõe através das letras miúdas o uso oral do medicamento para o controle de possíveis ataques de epilepsia e depressão.

Solitária, ela queixa-se da ausência dos amigos em sua casa, ao mesmo tempo em que resigna o fato de não poder recebê-los no lar distante de seus sonhos, ali onde sua filha se envergonha de receber um namorado,  ali onde, definitivamente, tem sido sua grande prisão. 

Maria está com depressão. Sufocada dentro da própria casa, na noite de Natal o presente recebido fora o anúncio do marido em viagem à cidade donde passaria ao lado dos pais o nascimento de Jesus. Sem convites, deixara-a e também os filhos, e se debandara sem remorsos aparentes. Este, o mesmo marido, que alertara Maria: se a fraqueza da esposa alcançar o divórcio com a igreja a ela também lhe será abdicado o casamento.

**Esta crônica faz parte da série "Cafés baianos", que conta as histórias de pessoas e dos povoados da cidade de Barra do Choça (BA) - cidade em que nasci e vivi alguns dos anos mais felizes de minha vida.

quinta-feira, 5 de janeiro de 2012

Cafés baianos

Pé de angelim, árvore centenária na Cavada II (Bahia)

A partir desta semana, o Vida em Crônicas,  através da série "Cafés", irá retratar as histórias de moradores do pequeno povoado Cavada no sudoeste da Bahia; comunidade em que vivi durante muitos anos de minha vida.

Como é a vida de algumas das pessoas que vivem nesse lugar de cerca de 700 pessoas? Conheça alguns de seus causos, sonhos, sofrimentos e alegrias.

A primeira história a ser abordada é a de Maria, uma mulher que tem se deixado levar pelas literais dores crônicas. Você conhecerá a vida de José e seus filhos, da jovem viúva Elizinha, da política, da menina estudiosa que abortou os estudos após o casamento e o nascimento de sua filha, do empreendedor Ronaldo, entre outras trajetórias.

Antes de embarcar nas novas histórias, veja a série Mulheres da Cavada, retratada em 2011.

domingo, 1 de janeiro de 2012

Quando o amor acaba


As dores passam e as tagarelices ficam, quando o amor acaba. O pesar cessa. Os olhos não faíscam mais uma acreditável paixão sem fim. 

Quando o amor acaba é capaz de se transportar no mesmo carro com o casal do qual você não faz parte – e isso não lhe custa dor. O coração parece emudecer.

Da boca de quem foi seu amor se ouve a expressão que não é remetida a você – e não há importância se o “Eu te amo” não lhe pertence mais. 
Não há mais amor. Há uma história remanescente, com os resquícios de um percurso que alcançou a linha de chegada, a reta final. Ainda existe amor, mas o de uma bonita história aonde o fraterno atalhou o seu posto. 
Não existe a desilusão doutros tempos em que a paixão efusiva embasbacava os sentidos. Os sentimentalismos foram combatidos.
A fantasia se finda. O futuro serena. E a saudade não é latente. Quando o amor acaba fica a amizade – e nesse caso, uma admirável.
Se na fábula o cravo brigou com a rosa debaixo da sacada, na vida real a rosa e o cravo protagonizam dentro de seus corações uma amizade sem confrontos, com o conforto da voz desafinada que a cada abraço de despedida revela, em sussurros, a eternidade de um sentimento verdadeiramente recíproco.

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Esta crônica faz parte da série "Cafés baianos", que conta as histórias de pessoas e dos povoados da cidade de Barra do Choça (BA) - cidade em que nasci e vivi alguns dos anos mais felizes de minha vida.