terça-feira, 27 de agosto de 2013

14 horas

Vinte minutos à espera num ponto de ônibus. Não era por ele -- o transporte público -- que ela aguardava, mas sim por um desconhecido que acabara de conhecer por meio de um aplicativo que geolocaliza seus usuários. Para vencer o atraso, matava o tempo jogando candy crush no iPhone. Viviam em municípios diferentes, embora distantes um do outro apenas 650 metros.

“Ferrou, minha mãe acabou de chegar em casa”, anunciou a mensagem no app da menina, enquanto ela ainda rumava ao posto de gasolina onde se encontraria com o rapaz. “Mas você não quer ao menos conversar num barzinho ?, propôs.

Encarando os primeiros contratempos, trataram de adicionar seus contatos ao Whatsapp: “Estou a caminho”, alertou ele no webchat. Ao seu lado, ela avistava casais estacionando na praça, que observavam, com romantismo, a água jorrar de um gigantesco chafariz, além de avistar passageiros descerem e subirem nos ônibus dos quais nunca adentrou.

“Onde você está?”, interrogou ele. “Do outro lado da rodovia, no ponto de ônibus, em frente ao McDonalds”, detalhou ela. “Cheguei”. Segundos antes, no entanto, ela havia se encaminhado para a faixa de pedestre, a vinte passos dali, onde cruzaria a rodovia em direção ao local marcado. “Cadê você?”, perguntou ele, assim que chegou onde ela anteriormente estava. “Estou aqui, logo à frente de você”, avisou ela, acenando com o braço esquerdo.


Ele tinha os cabelos negros tão escuros quanto seus olhos. Sua pele, cor de bronze, sem qualquer artificialidade,estava coberta por uma camisa xadrez por baixo de um blaser verde musgo. Não passava de 1,80 m e calçava botas de couro marrom nos pés tamanho 42. 

Cumprimentaram-se com um aperto de mãos e um abraço acanhado. Ele logo sorriu, exibindo seus dentes grandes e alvos. Ela, naturalmente simpática, brincou com seu atraso. “Obrigado por me fazer esperar por vinte minutos...”. Sorriram.

O lugar pré-combinado ficou para escanteio. Deixaram de ir a um açaí, para rumarem a um bar desabitado, numa rua repleta de outros botequins.

Sentaram-se à uma mesa de dois lugares e não discutiram no pedido. “Um Skol, por favor”, atalhou ele. A cerveja chegou junto com petiscos gratuitos à tira-gosto. Esqueceram-se de brindar, ignorando o ditado que diz dar azar àqueles que não realizam tal saudação.

Ela repousou os óculos de grau sobre a mesa de madeira, no mesmo momento em que ele, com ironia, apresentava sarcasticamente as redondezas para ela -- que embora os dois anos e meio do município vizinho não conhecia quase nada.

Bem humorados, pediram mais uma cerveja a qualquer um dos dois garçons à disposição. Na tevê plantada em frente ao casal, a partida de futebol entre flamengo e grêmio logo foi substituída por clipes de cantores sertanejos universitários. Papearam sobre universidade, família e ex-namoros.

Ele, filho de chileno com paulista; ela, herdeira de pernambucano com pernambucana. Ele 23; ela 25. Quarenta minutos depois, apanharam seus copos cheios sentido à área externa do bar. “Se importa se eu fumar?”, perguntou ele. “Para quem se acostumou com o cheiro de maconha dos amigos que apreciam a erva, cigarro não é nada”, brincou ela. Poucos minutos depois, porém, uma vendedora ambulante quebrou o diálogo, oferecendo os “doces da Preta”. Dispensaram a compra, mas não o cigarro pedido por ela, que não cessou: “E que tal um doce erótico?”, apanhou de uma bolsa miúda e florida um chocolate preto em formato de pênis. O trio sorriu. E ela partiu, dizendo que procuraria “mais movimento” na Vila Madalena.  

Entre uma baforada e outra, a dupla narrou seus porres: dos amores e desavenças com a tequila à mistura de drinks com sabor de morango e pimenta. Deram luz a baladas lights e namoros fulgazes; a viagens ao Nordeste ao marasmo domiciliar; aos passos de forró às apresentações no Circe de Soleil.

De dez para às vinte horas às dez para vinte e três. Se o tempo havia voado, o encantamento estava tão bem assentado quanto as estacas que cercam as mangas onde se criam jumentos bravos.

Estavam na quinta cerveja, quando um olhar recanteado e um sorriso libertino entregaram um convite. “Diga”, inqueriu ele, retribuindo com mesmo sorriso, demonstrando que aquelas expressões não precisavam mais de qualquer explicação.

A sexta cerveja arrematou a saideira. E o terceiro cigarro, as últimas tragadas. Dividiram a conta de R$ 46, deixando, juntos, o bar rumo à casa dela, a dez minutos à pé.

Do lado de fora do primeiro portão a certificação: luzes apagadas. Como supunha, ninguém estava em casa. Adentraram à garagem. Ela abriu o segundo portão; ele rompeu, em seguida. Mais alguns uns passos no corredor, até que a porta que dá acesso à cozinha por fim foi aberta. Ele adiantou. Parou ao lado da mesa, em frente à pia onde havia meia dúzia de copos sujos de café.

O giro da chave na porta foi tão rápido quanto os muitos beijos ardentes que dariam dali por diante.

As mãos dela, com seus dedos finos, agarraram com força o pescoço dele em meio a movimentos rítmicos. Os braços dele, robustos e ágeis, se envolveram facilmente ao corpo magro dela. Beijaram-se, revezando entre o beijo à la luta de línguas ao beijo agarrado – quando ela tomava os lábios dele entre os seus.  

Abruptamente ela se apartou dele, abrindo a “porta sanfonada” de seu quarto adjacente ao cômodo parede à cozinha. Miraram-se por alguns instantes, até ele encostá-la às bordas da pia, passando a língua pelo seu pescoço. “Vem”, intimando-o, ela segurou a mão direita dele, arrastando-o para o interior do cômodo.

Um beijo em pé, ao lado da cama de solteiro, antecipou o momento em que ele deitou-se de braços abertos sobre a cama de solteiro. Ainda totalmente vestidos, ela montou-se sobre ele, dando continuidade aos beijos incessantes.

A luz acesa entregava o prazer latente nos olhos de ambos, enquanto seus corpos despiam-se involuntariamente: calças e camisetas ao chão; uma cama pequena para horas paradoxalmente largas de prazer.

Sem dificuldade, sobre si, ele arrancou a blusa dela, que retribuiu automaticamente o mesmo ato. Ela deslizou, em sincronia, as duas mãos sobre seu abdome definido, até repousar sobre sua calça jeans.

Ele usava uma cueca branca, trazendo mais tesão àquela noite, que, assim como garante o clichê, era de fato "uma criança". Nus, os beijos alcançaram, sem exceção, cada pedaço de seus corpos quentes.

As horas passaram despercebidas, bem como a quantidade de posições sexuais – que dispensaram qualquer consulta ao kama sutra.

Gozaram de cada espaço do quarto minúsculo: apoiaram-se no guarda-roupa, sentaram-se à beira da cama, ampararam-se à parede de azulejos encardidos.

Penetram à cozinha. Ela, que nunca imaginara sentar-se um dia sobre a pia, estava lá. Encarava-o intensamente, quando os beijos cessavam. Em seguida, foi ele quem sentou-se sobre uma das quatro cadeiras (que faziam parte da mesa que também fora cúmplice daquela noite), encaixando-a em seu colo.

Uma hora e meia depois, foram vencidos por um sono leve. Ela repousou sobre seu braço estirado, enquanto ele cochilava de barriga para cima. Viraram-se dezenas de vezes, revezando a clássica dormida de conchinha. Distribuíram beijos sonolentos nesse ínterim.

Despertaram às três da madrugada. Desnuda, ela partiu à cozinha em busca de água gelada, embora raramente a bebesse. Contentou-se com a natural. Ele bebeu no mesmo copo que ela, que ainda trouxe uma garrafa ao quarto, largando-a de canto para atirar-se novamente sobre ele.

O sono foi consumido pela consumação sexual, estendendo até às quatro e meia da manhã. Seus gemidos e declarações eróticas misturavam-se com o barulho dos carros que começavam a sair das garagens vizinhas e com as conversas das pessoas que sofriam com o desprazer de levantar em pleno domingo, antes mesmo de o Sol nascer.

Sem banho, preferiram que aquela fragrância libidinosa continuasse a invadir não apenas seus corpos, como também o quarto, a cama e o cobertor.

Aliviaram, repousando novamente um sobre o outro. Intercalavam, a cada despertar, beijos na testa, sobre os lábios, ou em torno do pescoço. Se ela dava às costas, levava consigo seu braço. Embora dormentes, tivessem forças até mesmo entrecruzar os dedos uns nos outros.

Acordaram às dez para as nove da manhã sob a luz do Sol cortando a cortina bege do quarto. 

“Preciso ir”, disse ele. “Fica mais um pouco”, pediu ela. 

Ele cedeu; ela o beijou em forma de agradecimento.

Meia hora depois, ela foi a primeira a levantar. Pegou uma chaleira, esquentou água no fogão automático para preparar o café. O cheiro chegou ao quarto a partir da porta sanfonada entreaberta. Sentada à beira da cama, anunciou: “Fiz café para você!”.

Ela regressou à cozinha para por à mesa. Esquentou leite, apanhou pães sovados e bolachas cream creaker. Minutos depois, já vestido e despenteado, ele já na cozinha. Deu-lhe um beijo antes de partir ao banheiro e outro na volta.

Sentou-se sobre a mesma cadeira que horas antes utilizara não para apoiar-se enquanto beberica o café preto e forte em uma xícara.

“Preciso ir”, repetiu ele. “Fica mais um pouco”, pediu ela. 

A porta foi aberta sem qualquer tipo de pressa, ao contrário de algumas horas antes, quando adentraram juntos, eufóricos e ardentes, naquele recinto. 

“A gente vai se ver de novo?”, perguntou ela. “A gente vai se falando”, respondeu ele, sem muito convencimento. 

Abriram o portão do corredor e, por fim, o da garagem. “Tchau”, disse ele, dando-lhe o último dentre os incontáveis beijos, selando aquele encontro, que pode ter se resumido a quatorze horas.

terça-feira, 13 de agosto de 2013

Beijo com sabor de vinho branco

Desci a rua da Consolação em passos acelerados  -- bem mais apressados do que os de costume. As pessoas e os carros passavam por mim quase que invisíveis. À minha frente, uma tela imaginária exibia, em flashbacks --  assim como nos filmes --, uma série de lembranças que sonhara eu estivessem apagadas há um bom tempo.

E quanto mais rápidas se tornavam as passadas, mais fortemente ressurgiam as recordações. Elas que, infelizmente, haviam ganhado apenas um “pause”.

Eram pouco mais de 22h, e o único passado presente naquela sexta-feira julina eram os momentos universitários reportados numa mesa de bar, ao lado do Mackenzie, onde se graduaram a meia dúzia de jovens jornalistas.

No entanto, os passos largos me levavam a um momento interrompido há nove meses, exatamente ao mesmo lugar do primeiro e derradeiros encontros, fruto de todas essas recordações que embriagavam minha alma ainda recheada de melancolias.

Apressado, amparava a mochila nas costas com a mão esquerda, enquanto a bolsa batia a cada passo ligeiro. E quanto mais próximo eu chegava do destino final, paradoxalmente, desejava o atraso. "Assim, não a encontraria mais”, pensava comigo mesmo. Mas não.

Pouco mais de meia hora desde o primeiro contato, lá estava eu. Queria não ter recebido aquela mensagem no whatsapp, de um número desconhecido, perguntando como eu estava. “Estou bem”, respondi ainda sem saber quem era, até que o armazenamento do contato por meio de uma letra aleatória, um “F”, trouxe imediatamente a figura do seu rosto negro e dentes alvos.

Quando cheguei na rua, já ao longe, pude notar que ela me aguardava na parte inferior do bar. Abortei a pressa para falar comigo mesmo instantes antes de encará-la definitivamente. “O que estou fazendo?”, me autoinqueri, sem sucesso.

Ela arregalava os olhos e um sorriso em minha direção. Já eu não conseguia mirá-la proporcionalmente. Nos demos as mãos na grade que separava o bar, de dois andares, da rua. Enquanto ela me olhava com aquele sorriso colossal, minha face, sem expressão alguma, parecia carregar uma gigantesca interrogação. “Não vai entrar?”, me questionou. Sem dizer nada, adentrei o espaço, assim que apanhei a comanda do segurança na entrada do estabelecimento.

Com um copo de vinho branco na mão ela me abraçou firme, ao passo que meus braços compridos não tiveram forças para entrecruzar seu corpo magro.

“Quanto tempo...”, indagou ela, procurando iniciar um diálogo pacífico. Mudo, eu procurava barrar uma possível explosão de frases impulsivas que poderiam sair da boca de um típico ariano.

O bar estava cheio, tocava, randomicamente, estilos que variavam do MPB ao sertanejo universitário. Subimos às escadas em direção à mesa onde se encontravam três de seus amigos. “Você sumiu!”, disse um deles que havia me excluído do Facebook há alguns meses. “É... Sumi”, controlando, com moderação, o amargor por detrás das palavras que poderiam ser soltas a qualquer momento.

“Você está mais bonito”, me elogiou ela, enquanto me olhava como quem estivesse à frente de uma nova pessoa. “Continuo o mesmo... Assim como a mim você me parece”, respondi, seco.

“Não sei... Você tá diferente”, insistiu.

“Pode ser a barba que tenha me dado um novo ar”, contra-argumentei.

Com meus olhos fixos aos seus, embora a escuridão daquele bar, eu buscava encontrar respostas dentro de suas pupilas dilatadas.

Defronte a um enorme espelho, na parte superior do estabelecimento, ela via sua própria imagem. Sorridente, aparentemente feliz em ver, me pediu para “abaixar a guarda” na tentativa frustrada de um abraço.

“Por que deveria?”, retruquei essa que era a indagação que dominava qualquer discurso que eu pudesse empregar naquela noite.

“Por que... ?”, e antes de qualquer discussão de relação que não mais existia, ela interrompeu o princípio do que seria um interrogatório, para se encostar ainda mais próxima a mim.

E enquanto meu corpo desejava o seu, minhas lembranças rememoravam, há nove meses, nós dois, sentados em uma mesa daquelas, trocando beijos recíprocos e sorrindo, aparentemente felizes.

Porém, irresistivelmente, cedi. Envolvi seu corpo ao meu e, ritmicamente, nos beijamos, beijamos... E, a cada intervalo, eu fixava meus olhos nos seus à procura de respostas que decerto não seriam respondidas numa noite que poderia ser resumir "a apenas uma noite".

“Havia esquecido que seu beijo era tão bom”, revelou ela. “Você se esqueceu tanto coisa...”, completei, quase que em sussurros.

Ficamos ali por quase uma hora, até seus amigos a intimarem sua despedida, muito postergada por ela, que amparava o copo na mão direita, levemente cambaleante.

Descemos as escadas rumo ao caixa. Paguei apenas a entrada no bar: R$ 6, enquanto ela desembolsou R$ 180. Já meio embriagada, demos um beijo de despedida ainda dentro do bar. Um beijo com sabor de vinho branco, seguido de um toque no rosto.

Do lado de fora, o início do fim do reencontro foi selado por sua inquisição. “E agora?”. Com sarcasmo, retruquei, emendando: “Meu número você tem!”.

Viramos as costas, descortinamos as lembranças. E, confesso: não sei se definitivamente a taça foi quebrada ou se será remendada, se demos adeus ou um até logo