quinta-feira, 30 de junho de 2011

O pé de Angelim

O pé de Angelim fica praticamente no quintal da casa do meu avô Zé Branco. Nunca descobrimos ao certo a idade desse pé de pau, embora suspeitemos de seu centenário. Desde que me entendo por gente, essa árvore gigantesca está encravada no mesmo lugar. Na verdade, desde os 18 anos de vovô, quando ele chegou da Paraíba para se aventurar pela primeira vez em terras baianas -- mais precisamente no povoado que ainda nem se chamava Cavada 2, em Barra do Choça, a mais de 500 km de Salvador. 

O pé de angelim
Assim que chegava a primavera, observávamos as folhas avermelhadas enfeitarem o chão, em torno do pé de angelim. Se fosse em dezembro, poderíamos dizer que ela seria uma espécie de árvore de Natal coletiva -- e gigante, bem gigante! Toda vida, ela foi a moradia de muitos filhotes de coquis e joões-de-barro e, além dos pássaros, também o lugar aonde o filhote de meu avô, o pequeno Lázaro, foi o primeiro a morar para sempre.

O pé de Angelim era uma das únicas árvores nas quais não trepávamos, devido sua imensidão, ou até mesmo por respeito à imponência que ela nos trazia. Confesso que eu nunca tive muita habilidade para me engalfinhar em meio aos pés de jaca, goiaba ou manga das terras de vovô. Quando chegava a época frutífera, Zé Branco gritava o caçula dos filhos – o único que ainda vivia com ele – para apanhar jaca madura. E lá subia meu tio Benevenuto, estalando com os dedos da mão direita na fruta no intuito de identificar aquela que estivesse madura e que, logo mais, obviamente, seria devorada pelas dezenas de sobrinhos.

casa de Zé Branco
De vez em quando eu ficava embaixo aguardando as jacas que ele recolhia lá no topo, enquanto, tão veloz quanto um macaco sonhinho, Bené pulava de galho em galho à cata da escolhida. Sempre tive vontade de reunir todos primos para abraçarmos o pé de angelim. Queria saber quantos de nós seriam necessários para envolver à grande árvore. Acredito que ao menos uns cinco. Porém nunca descobrimos o número exato.

Não cheguei a conhecer o pequeno Lázaro. Quando nasci, havia completado dois anos que ele tinha partido ao pé de angelim. A pequenina cruz de madeira feita pelo meu próprio avô indicava o lugar exato onde ele fora viver brevemente aos sete meses de vida.

Duas décadas depois do filho, vovô - a figura mais importante daquelas bandas - deixou sua casa com quem dividia sua vida com Izaulina, sua esposa, e o caçula, Bené, para também morar embaixo da árvore.
Declaradamente esse era seu maior desejo: poder viver eternamente no local em que durante as 58 primaveras de sua vida viu lotar o chão de vermelho depois de cada florada.


Escola Municipal Rui Barbosa, defronte à casa de vovô

Gente de todo lugar brotava naquele dia ao qual vovô partiria em definitivo para o pé de Angelim depois de ser vencido pela Mal de Chagas. Toda aquela gente queria se despedir do homem que fez história na região, não apenas pela inconfundível tonalidade de pele, mas por amar aquele lugar e literalmente fincar suas raízes naquele pedaço de chão.

Minha mãe, Osmilda, a segunda filha dos onze herdeiros do primeiro casamento de vovô, declaradamente sempre foi sua preferida. Herdou do pai a pele clara, o cabelo liso acastanhando e principalmente a força do escorpião que regia seu signo.

Depois de viver em São Paulo por muitos anos, sua única certeza era que o sol baiano brilhava com mais força em sua vida. Dos cinco filhos, somente a dupla de caçulas – os gêmeos Dani e Daniel – nasceu fora da Bahia; porém após relutar contra sua renegação à maior cidade brasileira, juntos - exceto o patriarca da família - voltaram a pisar no chão onde todos se criaram, para passar ao lado da mãe os derradeiros dias em que unidos compartilhariam o mesmo teto e vivenciariam os instantes (embora últimos) mais felizes de suas vidas.

Pouco menos de um ano em que vovô foi carregado para a árvore, foi a vez de minha mãe deixar a mim e aos meus quatro irmãos, para viver ao lado do pai Zé Branco e do irmão Lázaro. Após trocar São Paulo pela inóspita e adorável Cavada II, Milda (como era chamada) sabia que mais difícil do que a cura do câncer maligno que carregada em seu seio era não poder viver seus derradeiros dias ao lado das pessoas e do lugar que mais amou na vida.

"Ladeira de Zé Branco". Ao lado direito do ciclista, o pé de angelim
No alto de suas exatas quatro décadas de vida, ela fez o máximo possível para não sair de casa. Não mais se importou por meu pai ainda querer viver em São Paulo. Manteve a organização da casa como chefe de família que nunca deixou de ser. Arrancou o seio. Abdicou dos cabelos. E foi atendida por Nossa Senhora e Meu Pai, depois de implorar durante três anos para que as dores não rasgassem mais seu corpo com tanto sofrimento.

E elas cessaram... No dia em que minha mãe fechou de vez os olhos e deixou nossa casa, para viver a  cinquenta metros de nós, mas debaixo do pé de Angelim, ao lado das folhas e flores sobre si e sob o canto dos pássaros que não se cansam de aportar no pé de pau mais antigo das redondezas.

É também nesse lugar onde não há o “enterro”, mas a “morada”, o chão em que quero viver quando eu sair de casa.


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14 comentários:

Bruna disse...

Emocionante!
Pé de angelim carrega uma trajetória e mantém as histórias sempre ligadas.
Adorei :)

Wadila de Alencar disse...

Emocionante mesmo!

É triste, mas uma bela história.
A mulher que mais amo, está agora ao lado do meu avô, mas mesmo longe, ela está em meu coração.

Grande saudades!
Acho que vão ter que arrancar os pés de café que tem ao redor do pé de Angelim.
Pois um dia com a vontade de Deus, abrigará mas uma parte de mim, e eu também estarei lá.

Luisa Pierson disse...

Às vezes fico pensando como a natureza tem a belissíma característica de ser tão deslumbrante e tão cruel. Ao mesmo tempo e talvez na mesma medida, ou não. Mas sempre justa.
A natureza literalmente nos oferece tudo aquilo que o Homem precisa para sobreviver. Alimento, água, frio, calor, vestimentas, teto, cama... Mas nós sempre queremos mais! Queremos tanto, que nem a natureza, essa que nos dá a vida, faz parte mais dos nossos interesses. Nos consideramos donos do mundo e do planeta Terra. Mas há certas coisas que ainda não conseguimos dominar e tirar do poder da natureza: a morte. Mesmo com remédios e tratamentos, antecipações e desvios, em algum momento ela nos alcança, nos pega pela mão e nos leva. A morte, a grande sombra da existência do homem. Esse que insisti em viver para sempre. E para que? Como sentiriamos saudades, como lembrariamos dos momentos bons ou ruins? O que seria do mistério da vida e de viver? A morte é essencial! A morte, ousaria dizer, por vezes pode ser bela. Bela como essa sua lembrança Vagner, como esse seu refencial de vida, de raízes e de valores. Como esse seu conceito de morrer: sair de casa, ir de encontro aos seus. Reencontrar aqueles que um dia apensar se ausentaram fisicamente, seus amores continuavam vivos próximo a vida daquela àrvore, o Angelim.

Luisa Pierson disse...

CORREÇÃO: *apesar de se ausentarem fisicamente...

edilomar disse...

muito emocionante sim,pois lendo o seu relato me fez relembrar como um passe de mágiga o que vivemos alí,quantos momentos felizes neste lugar,vovô sempre atencioso com todos,me lembro muito das jacas
que comíamos quando iamos pra sua casa,bons tempos esses. E tia milda o que falar dessa mulher, ou melhor, dessa guerreira que lutou até o último instante de sua vida. DUAS PESSOAS INESQUECÍVEIS.
essa história me arrepiou e me deixou emocionada. Parabéns

Iasmim Neres disse...

Fiquei realmente comovida com a forma que ele escreve, é de um grau tão elevado de conhecimento, e de espiritualidade, a forma com que foi tratada as perdas cotidianas da matéria, poucos tem o dom de tratar tal assunto desta forma. Parabenizo-o, e recomendarei seu blog.
Abraços,
Iasmim Neres

Maiza Vieira disse...

Lindo! O jeito como é contado tocou o fundo do meu coração.. pois é um assunto tão delicado e ao mesmo tempo emocionante!

Daniela disse...

Nossa realmente como você disse essa com certeza e a mais linda e emocionante, juntamente com:"Feliz aniversário, meu filho". Eu estou sem palavras. A minha emoção diz tudo. Lembrei de uma música do Diácono Nelsinho Corrêa,Saudade:"
Só se tem saudade do que é bom
Se chorei de saudade não foi por fraqueza foi porque amei.
E se eu amei quem vai me condenar?
Se eu chorei quem vai me criticar?
Só quem não amou, quem não chorou
Quem se esqueceu que é um ser humano
Quem não viveu, quem não sofreu
Quem já morreu e se esqueceu de deitar". Você me fez pensar na importância do amor, do amor ao próximo.Como um Padre disse ontem na Missa. Receber, amar e partilhar... Gostei desse trecho:"Confesso, é também nesse lugar onde não há o “enterro”, mas a “morada”, o chão em quero viver quando eu sair de casa."

Dani disse...

De novo, AMEI. Já reli mais de três vezes. Sentir muito bem, um certo carinho. Aconchego em sua palavras. Bjs

Anônimo disse...

Linda história, Vagner! E muito bem contada. Maravilhosa a imagem do pé e Angelim e todos os seus significados para a sua família. Se ainda quiser abraçá-lo, estou dentro!

Beijo grande,
Tati

Anônimo disse...

continue assim e vc ira longe, pois sao palavras muito bem colocadas ao mostrar sentimentos e a historia da sua familia, parabens

tracy disse...

um relicário seu texto!

fran disse...

como sempre, vc arraza, parebens, longe, e ao mesmo tempo tão perto..

The Escapist disse...

Sem palavras, perfeito e emocionante.