domingo, 21 de março de 2010

Por onde anda Dudu?














Dudu é ainda um menino, percorrendo em rumos novos, histórias antigas de sua vida.
Um pequeno mineiro perdido na imensidão de São Paulo, à procura do avô que nunca conhecera, e num dia de Carnaval, alimentando o breve desejo de não passar em branco uma noite e realidades já tão muitas escuras para ele.

Carlos Eduardo Ignácio da Silva é o nome de batismo desse menino 22 anos de idade.
De carona em carona, Dudu deixou "Três Corações", cidadela ao sul de Minas Gerais. Com a mente cheia de sonhos, porém, de mãos vazias, o menino desembarcou em Campinas, no início de seu percurso, até chegar à cidade de São Paulo.
O jeito de falar, logo revelou, através do sotaque doce e do olhar ingênuo, a origem do garoto de pele escura e olhos vivos.

Era véspera de quarta-feira de cinzas... E, casualmente (ou não) cruzei o caminho daquele garoto naquela noite em que eu voltava de uma semana agitada de Carnaval. Eu havia saboreado a curtição da água doce de uma represa no extremo-leste e o sal do mar da Praia Grande.Dentre os mais de 20 assentos disponíveis no micro-ônibus, dirigi ao fundo, e na derradeira poltrona do lado esquerdo, acomodei-me com minha minúscula mochila azul-marinho abarrotada com um livro emprestado de um amigo escritor, além de algumas peças de roupa.
Dudu entrou, e da mesma maneira que fiz, encaminhou-se ao final do veículo. Sentou-se na ponta oposta a qual eu estava. Trajado com um tênis velho no pé, uma camisa surrada e uma bermuda florida bastante fina com um pequeno papel avulso nas mãos, ele sentou-se.

Imediatamente, e de maneira inquieta, ele agitou-se a remexer o bolso da bermuda. Levantou-se e continuou a procurar. Olhou para baixo, para os lados, embaixo da poltrona.
- Acho que perdi 10 reais! Em tom alto, resmungou após a contínua busca.
Mirei-me para ele num curto olhar, praticamente ignorando o fato:
- Puxa, que chato!
Naquele momento senti que ele se contentara com minha breve lástima. Porém notei que ele ainda procurava alternativas para estender minha atenção.
- Esse ônibus vai pra metrô Carrão?
- Sim. Respondi sinteticamente.
- Sabe me dizer como faço pra chegar a esse endereço? – abriu o papel que carregava consigo, dirigindo-o em minha direção. Estava escrito no pedaço rasgado de um caderno, com letra miúda, o itinerário detalhado para se chegar ao Sambódromo do Anhembi.
Enquanto eu visualizava o percurso o qual fazia-se necessário pegar o ônibus e passar por duas estações de metrô, registrei Dudu, na contagem de suas moedas e cédulas de dois reais.

Devolvi seu "mapa" e em seguida perguntou se ele tinha certeza de não ter perdido mais dinheiro.
- Não. Só tinha aquele mesmo.
Restara uma miúda quantia. Algumas moedas e uma nota de dois reais.
Preocupado, ele indagou qual era o valor da passagem de ônibus, temendo que o dinheiro não fosse o suficiente para chegar ao seu destino.
- R$ 2,65, o bilhete do metrô e R$ 2,70 o de ônibus.
Abri minha mochila, apanhando minha carteira ao fundo. Retirei dez reais, ainda dos vinte que me restava.
Aproximei-me do banco e levei o dinheiro em direção ao garoto.
- Toma!
- Não precisa. Obrigado. Retrucou, Dudu.
Ainda insisti que ele aceitasse:
- Aceita. Pelo que parece o dinheiro estava contado, não é?
- Sim, estava. Mas não quero te incomodar.
- Se eu tenho vinte e você não tem nada. Não vou morrer por causa disso. Além do mais pelo que parece, você não tem mais nada. Certo?!

O garoto abriu o sorriso, exibindo os dentes ávidos. Novamente agradeceu-me. Recebeu o dinheiro de minhas mãos. Olhou para a cédula e em seguida me devolveu.
- Obrigadão aí, viu, mas prefiro que, assim que chegar no terminal, você compre e me dê o bilhete! Acho mais justo.
Realmente a atitude de Dudu me admirara. E claro, valeria a pena dedicar minha atenção a essa daquele menino.
Dudu estava a caminho do desfile das escolas campeãs de São Paulo. Ele queria sentir que o Carnaval não passara despercebido para ele, diferentemente das pessoas que cruzavam por ele sem notá-lo.
Naquela noite, minha pele clara ardia do Sol intenso da praia usufruída no fim de semana, enquanto Dudu fantasiava a desejo latente de não passar em branco o Carnaval, numa noite e realidades, assim como ele, muitas vezes, já tão amargamente pretas.

Ele estava sozinho em São Paulo, levado pelo impulsivo de alguma forma divertir-se no derradeiro dia de Carnaval, orientado por rabiscos num pedaço de papel e pela bondade de quem se dispusesse a ajudá-lo.
A descoberta da existência do avô materno que morava em São Paulo provocou o interesse de Dudu em encontrá-lo, embora não tivesse sequer endereço ou telefone. Somente uma única referência: o nome do bairro, Capão Redondo.
Só que Dudu parecia não saber que diferente da pequena cidade onde vivia, São Paulo como toda a sua infinitude poderia ser um árduo labirinto ao garoto que não tinha casa, amigos, ninguém.

E ali, sentados no último banco daquele ônibus, poucos minutos passados das 21 horas, ele tinha a mim, que se aproximara dele para ouvi-lo narrar sua vida.
Chegamos ao Metrô Carrão. Partimos em direção a guichê onde comprei os bilhetes.
- Toma, fica com o troco! Levei as moedas e duas notas à sua mão escura.
Atravessamos a catraca, descendo as escadas rolantes. Adentramos o vagão e continuamos a conversa. Dudu me contara das namoradas, dos carnavais em Minas Gerais e também um pouco de sua família. Até que desci na estação República onde teria de pegar dois ônibus até chegar em casa, enquanto Dudu seguira seu percurso, agora, sozinho.

Aconselhei-o a pedir informações assim que desembarcasse na estação Barra Funda.Um aperto de mãos selou o término daquela noite de Carnaval em que o conheci. Como Dudu me mostrara o cartão do Centro de Acolhida onde ele estava morando, memorizei vagamente o endereço do local. Dias depois, relembrando do caso, pesquisei na internet sobre o albergue. Era o único na região. Encaminhei um e-mail, dando as referências de Dudu. Após aquela noite, estive intrigado em saber o paradeiro do garoto. Gostaria de encontrar com Dudu para saber como foi aquela noite de Carnaval, se conseguira chegar ao Sambódromo.

Decidi de alguma maneira, mesmo que minimamente ajudá-lo, quem sabe auxiliá-lo a encontrar seu avô, entrar em contato com sua família em Minas Gerais talvez.
No entanto, a resposta ao e-mail enviado ao albergue confirmara que Dudu não estava mais lá.
"Bom dia, o convivente mencionado não se encontra mais nesse Centro de Acolhida. Atenciosamente".

Hoje completa mais de um mês que cruzei por cerca de meia-hora aquele menino negro, de olhos vivos, de sonhos sonhados quase que ingenuamente.
Não sei se ele tivera o prazer de chegar ao Sambódromo.
Não sei se conseguira divertir-se naquela noite que procurava um sentido para manter-se ainda acreditando em seus objetivos.
Não sei se Dudu conseguira encontrar seu avô. Se alcançara o abraço do homem que o dera ímpeto - mesmo que indiretamente - para estar aventurando-se em São Paulo.
Consequentemente, não sei por onde anda Dudu.