segunda-feira, 19 de maio de 2014

Antena parabólica

Rede Globo ou Rede Record. Era estranho dizer para qualquer ser humano que meu cardápio televisivo se resumia a estes canais. Xiadamente até conseguia ver outras emissoras. A Rede Vida de Televisão era uma dessas. Passava depois do número 50. E eu me perguntava se alguém assistia a qualquer canal depois do 13, que era da Band e que também não era transmitido na tevê Sharp de casa, de 21 polegadas.

Eu tinha 16 anos, morava no povoado Cavada II, na Bahia, e ostentávamos ser os donos de uma das primeiras televisões com controle-remoto das redondezas. 




Nos tempos como morador de São Paulo, no entanto, zapear inúmeros canais de televisão com o controle era algo tão banal. Aliás, ter uma tevê tamanho 21 não significava nada de ostentação, pelo contrário. Minha prima Edilomar, por exemplo, foi uma das primeiras da família a um televisor grande (que chique era pronunciar TE-LE-VI-SOR) de 29 polegadas e daqueles finos.

Em minha casa, não desfrutávamos de telefonia fixa, imagina possuir tevê a cabo. Assistir HBO, Discovery Channel ou TNT, só em sonhos. Contentava-me apenas e somente pelos passeios na tevê aberta.

Via os clipes com legenda da MTV (na intenção de aprender algumas frases em inglês), as receitas dos programas femininos da Gazeta (graças a eles, aprendi a fazer altos bolos, especialmente de banana com cobertura de caramelo), e os filmes pornôs de Emanuelle, nas madrugadas da Band (claro, escondido dos meus pais e, em especial, dos meus quatro irmãos mais novos. O que aprendi com eles, bom, melhor deixar pra lá).

No Bahia o cenário era totalmente oposto. SKY era literalmente o céu azul cheio de andorinhas que, definitivamente, faziam verão. Por lá, não havia quem não soubesse cenas detalhadas das novelas. E eram os folhetins o programa preferido de muita gente que, até então, só tinha como divertimento falar da vida alheia. Com as novelas não; era possível se envolver com outras muitas histórias que não as do vizinho, da irmã quenga ou do cunhado raparigueiro.

Meu avô Deoclides, desde a compra da primeira televisão, sempre foi viciado por novelas. Não conhecia o nome verdadeiro de nenhum ator, mas sabia de cor e salteado as graças do personagem da novela nova que tive um papel de destaque numa novela antiga.

Aos 70 anos, seu Dió (como era chamado por todos) decidiu frequentar a escola. Tinha como professor seu neto (vulgo eu). Mas a vida de estudante durou pouco tempo. No placar: Novelas da Globo 1 X 0 Vagner de Alencar (mesmo que eu fosse professor e neto preferido).

O novo-ex-aluno optou por acompanhar o dia a dia novelístico a ensaiar as primeiras palavras formadas pelas mãos enrugadas e cheias de calo, com a ajuda do neto adolescente.

Meu avô plantava sua bunda no sofá às 17h30, na hora do início de “Malhação”. Bebericava café trazido em copos americanos pela esposa Aliça. Jantava a comida vinda no prato fundo, também trazido por minha vó assim que começava a novela das sete. Apenas nos horários dos telejornais, saía para ir ao banheiro e espreguiçar braços e pernas. Durante a novela das nove, sonolento, já estava piscando os olhos, que logo se arregalavam na passagem de alguma cena de ação ou de sexo. Sorria à toa e intuía todos os próximos capítulos.

Tia Zau, a mulher do meu outro avô Zé Branco – e que não era nossa avó – levava tão sério as histórias fictícias que, inclusive, xingava os personagens. Noutros momentos, achava que eles falavam com ela.

Eu sempre gostei de novelas. Era apaixonado, em especial, pelas aberturas. Vivia a imaginar como seria a do próximo folhetim. Algumas delas ficaram imortais em minha cabeça. Nunca me esquecerei de a bunda tatuada de “O mapa da mina”; da abertura feita de desenhado animado de “Despedida de solteiro"; e, mesmo sem saber muito o porquê, aquela que mostrava os brasileiros sendo afundados pela lama, de “Deus nos acuda”.

Não queria me tornar um expert em novelas – embora já o fosse. Queria assistir aos documentários do canal Cultura, ver as pegadinhas engraçadas do Programa Silvio Santos. Mas, pra valer, o que mais queria me interessava na tevê era o Show do Milhão.

Quando vivia em São Paulo não perdia um programa sequer. Comprei os produtos mais baratos da cara marca Nestlé e catei tantos outros no lixo, para juntar as oito embalagens necessárias para enviar uma carta e concorrer à participação no programa, na época da parceria com a marca suíça. Lamento até hoje não ter conseguido!

Na Bahia, todas as quartas-feiras dormia na casa de minha tia Erocilma -- no dia em que passava o programa que podia tornar qualquer mero mortal como eu num milionário. E o mais fantástico: por meio dos conhecimentos gerais.

Tia Cilma deixava minha janta pronta. Numa vasilha de alumínio, sobre o fogão a gás sem lenha queimando, a marmita ficava morninha. O menu era o costumeiro: feijão, arroz, macarrão e carne ou frango; às vezes tinha cortado de chuchu ou de mamão verde.

A televisão ficava na sala da casa dela, colado ao seu quatro. Todos os cômodos de meias paradas eram iluminados por conta da tevê ligada. Eu costumava assistir sozinho, já que todos dormiam antes das 23h.

Quando não estavam com tanto sono, Tia Cilma e Bite, seu marido, me faziam companhia. Assim como eu, pareciam que estavam lá, no programa, respondendo às perguntas. E também como eu, ficavam indignados quando a banca de universitários não não sabiam ou erravam uma questão. Chamavámos eles de “universiotários”.

A marmita quentinha e o aluguel da televisão de minha tia acabaram tempos depois. Assim como ela, decidi ter em minha própria casa uma antena parabólica. Só os proprietários de uma antena parabólica tinham o privilégio de zapear outros canais que não a Globo e a Record.

Eu tinha 17 anos quando comprei meu primeiro bem de consumo: aquele trombolho circular que nos trazia mais canais de televisão, e umas das poucas no povoado.

Tudo por conta do meu primeiro salário. Ou melhor, dos primeiros -- fruto dos meses como professor, no povoado Oito Paus, a três quilômetros de onde eu morava. Migrava de bicicleta à noite, para o galpão onde dava aula, por meio do programa Alfabetização Solidária. Ensinava alguns alunos pros quais tive de desenvolver as habilidades como psicólogo ao quebrar a concepção de dona Maria, que dizia que papagaio velho não aprendia a falar. Para eles que mal sabiam o bé-a-bá e dependiam de mim para balbuciar as primeiras palavras ou não aposentar a assinatura feita com o polegar carimbado de tinta.

Todas as noites, na volta para cá, eu precisava pedalar rápido, veloz (aqui caberiam todos os sinônimos de apressado). Pegava impulso, até estender as pernas secas e finas para cima, na fuga das mordidas dos cachorros, que pareciam me esperar ansiosamente, no rumo da casa de Manel de Gil.

O desafio de alfabetizar adultos e escapar de cães bravos, após cinco meses, me renderam seiscentos reais. Sei que poderia comprar roupas novas, um tênis legal, ou até mesmo uma televisão maior e melhor, e à vista. Mas não. Decidi comprar uma antena parabólica. Custou 400 reais -- o resto dei para minha mãe. Valor bem menor à quantia dos 500 reais, que ganhava os participantes com o acerto da primeira pergunta em o Show do Milhão, mas que me trouxe o prazer de ficar jogado no sofá de minha casa, testar meus conhecimentos e participar do meu programa preferido!

segunda-feira, 21 de abril de 2014

Beijo com sabor de vinho tinto

O Crossfox prata “apagou” duas vezes antes de adentrar, por completo – ainda que tortamente –, a garagem. Enquanto ela carrilava o portão, prendendo-o com correntes e cadeado, as sandálias havaianas de Fabiano estalavam no chão, em sintonia – ou não –, com o barulho da sacola de papel branca e laço preto que trouxera naquela noite, minutos da véspera de Natal.



 Fabiano estava de camiseta básica, vermelha, e bermudão azulado. Continuava com o mesmo sotaque paulistano e sorriso luminoso. Até uma hora antes, eram dois seres solitários em suas casas, largados em seus respectivos sofás, em meio a uma segunda-feira preguiçosa que inaugurava o período de férias.

Treze quilômetros depois, o contato via whatsapp deu lugar ao face a face, olho no olho. Suas mãos, que até então apenas digitavam o teclado do Iphone, na zona leste, se encontraram com as dela, na zona sul, ainda na garagem, em antecipação ao abraço acanhado, em seguida.

 Das mãos de Fabiano também vieram aquilo que ele chamou de “presente”. Dentro do embrulho um vinho seco italiano e um panetone de chocolate. “Pra você”.

O panetone ficou intacto; ao contrário do vinho. Havia somente duas taças no armário: o suficiente para embebedarem a noite.

Completadas até a metade, penetraram à sala cada um com a sua taça entre os dedos. Já esparramados sobre o sofá de três lugares, brindaram não sei o quê, ao som de ritmos aleatórios da MPB que tocavam na rádio Nova Brasil FM e invadiam o cômodo por meio do home teather com caixinhas de som penduradas sobre o alto das paredes.

O beijo não demorou a ser dado. “Vem aqui”, disse Fabiano abreviando o toque nos lábios, enquanto arrastava o corpo sobre o seu. Seu beijo permanecia leve e envolvente, como seus dedos finos que tocavam seu rosto.

Ali, não fizeram juras, embora tenham discutido uma relação que nunca havia sido consumada.

O vinho e as canções românticas, que se alastravam pela casa, eram a trilha sonora daquela história, que, há pouco mais de um ano, no entanto, ainda se fazia por meio de momentos paradoxalmente intensos e vazios; vivos e escuros.

E naquela segunda-feira que se resumiria a um dia meramente reflexivo (ela estava sozinha em casa, resgatando momentos e memórias), Fabiano então invadiu seu sossego através de uma mensagem que poderia ter sido simplesmente rejeitada.

Porém, como ser racional quando seu coração pede apenas que você viva?! E ela decidiu viver: viver aquele beijo na sala; aquela transa na cama; aqueles beijos apaixonados; aquela noite inesquecível.

 Às 10h, um abraço e um “Feliz Natal, Feliz Ano-Novo” foram anunciados, assim que o portão se fechou, selando a despedida.

domingo, 13 de abril de 2014

Bicas a pipas

Por aqui as pipas poderiam pintar o céu naturalmente azul.
Não há emaranhados de fios como nos grandes centos urbanos.
Porém, por aqui elas não existem.
Os meninos preferem bicas a pipas.

As pipas poderiam irritar os pássaros:
Os únicos donos dos ares.
Mas não.

As andorinhas voam baixo, fazem manobras espetaculares;
Batem, velozmente, suas asas, sem precisar de mais nada.
Mostram que são livres o suficiente
Para nem precisar competir com os papagaios falsos. 

Os meninos preferem bicas a pipas
Trocam a linha pelo cabresto de um cavalo brabo,
Com um desafio muito mais atraente: amansá-lo.

Por aqui não há pipas;
E sim peladas nos fins das tardes de quartas e sextas-feiras.

Sem cerol e linhas nas mãos,
São pés ágeis e calejados
Que correm rumo à bola no único campo de futebol de várzea,
Cercado de outros pés: de café e abacate.

Por aqui não existem pipas,
Embora elas sejam a forma mais simples de chegar às nuvens.
Nuvens que chegam a ser do tamanho das árvores.

Os meninos preferem pisar firme no chão
Estar entre orquídeas que brotam entre cravos e margaridas
Andar a cavalo, nadar no rio à beira de suas casas, tomar banho de bica
Voar com suas próprias asas, sem carecer de pipas.

Fotos (jan/2014 - Povoado Cavada II, Barra do Choça/ BA)














terça-feira, 8 de abril de 2014

Feitiçaria

Sob a luz das frestas de sua casa alugada, coberta de telhas de cerâmica, Iraci levantou -- com bastante dificuldade -- a blusinha rosada e florida que vestia, para exibir as manchas vermelhas e misteriosas -- parecidas a queimaduras -- que há meses envolvem suas costas.
Já com a pele branca totalmente flácida, em seu rosto enrijecido é quase impossível computar a quantidade de rugas que deixaram para trás a mocidade da mulher que nunca conseguira se queimar com o sol tão cotidiano quanto castigador.
Os pés calejados de Iraci

De corpo miúdo e frágil, as pernas de Iraci estão fininhas e fracas; cambaleiam mesmo nos passos mais curtos. As mãos trêmulas conseguem suportar somente o peso da faca e do fumo de corda quando prepara o cigarro de palha do qual nunca conseguira abandonar o vício.
Sua voz também está diferente: poucos são os dentes que se mantiveram em sua boca, já murcha; seus cabelos lisos continuam tão cândidos quanto maltratados, sempre aprisionados a uma xuxinha, também cor de rosa, que, involuntariamente, combina com o restante de seu vestuário envelhecido.
“O advogado (ou adevogado, como costuma dizer) jogou no rumo 72”, balbuciou Iraci, que, há menos de um ano, conseguira finalmente aposentar-se por tempo de idade. Anos estes dos quais se esquecera com o tempo, ou, na verdade, nunca os soubera de fato.
“Sou a caçula, a derradeira das muié. Finada Mariazinha morreu já faz um bocado de tempo, assim como seu Zé”, rememora, tentando traçar um paralelo, a partir de sua memória frouxa, seu tempo de vida com o dos irmãos que já se foram.
Tiraro três retrato meu. Dero 65, 70 ano... Mas o adevogado disse que não tinha como eu ter menos que 72”, sentencia ela.
Agora, Iraci pode dizer quantos anos possui – embora talvez não necessariamente sejam os seus.
Com o dinheiro da aposentadoria -- retirado mensalmente no primeiro dia útil do mês -- são pagos a feira (para a compra de cereais e mistura), a conta de energia e o aluguel, no valor de R$ 80. “Vou recramar dona Maria desse preço. Tá muito caro, meu filho”, lastima.
É nessa residência que Iraci mora com o filho Marcelo.
Depois de viver como um errante, ele então decidiu ir para os braços da mãe. “Ou do dinheiro dela”, inteiram as bocas miúdas.
Aos 32 anos, Marcelo é o caçula dos três filhos homens de Iraci. Exceto ele, o restante dos irmãos deixou a Cavada II para rumar a São Paulo, e voltar de vez em nunca. “Tem como tu jogar os nome dos meus irmão na internet, para ver se nóis consegue achar eles?”, sonha ele.
Marcelo não passa dos 1,65 m; tampouco dos 60 kg. Possui uma janela entre os dentes escassos e nunca se aparta de um chapéu surrado que cobre os cabelos ralos e anuncia a chegada da calvície.
A casa onde convive com a mãe tem quatro quartos (num total de dez cômodos) e uma área ao fundo repleta de pés de mamão, abóbora, café e outras hortaliças vencidas pelo mato alto que impede a fertilização das frutas e dos vegetais.
Na primeira, das duas salas, sem mesas e cadeiras, tampouco um quadro qualquer pendurado nas meias paredes, quem enfeita o espaço é uma motocicleta Titan KS, seminova, adquirida com parte do valor do salário de Iraci.
Por ali, há apenas uma porta em um dos quartos, que são tapados por cortinas de pano com estampas de peixinhos coloridos, vizinhas a uma gaiola que aprisiona um rolengo – típico passarinho da região.
As meias paredes da casa de Iraci

Um aparelho de rádio a pilha barulha a segunda sala ao som de emissoras mal conectadas que parecem apresentar apenas comerciais. Já no quarto, de Marcelo, uma tevê antiga, de 14 polegadas, está conectada a um aparelho de DVD. Sobre ela, está ainda caixa de sapato que guarda nem meia dúzia de filmes: um pornô e outros “de luta e de cobra”, como garante Marcelo.
Na casa de Iraci o chão tem o piso vermelho, e a poeira que sai da estrada forma tapetes de pó por todo o ambiente. Lá, a água não cai na torneira, embora haja distribuição no vilarejo. Mãe e filho preferem tomar banho de balde a sentir a água cair do alto de chuveiro sobre as suas costas. A luz de duas telhas plásticas, encaixadas às de cerâmica, ajudam as lâmpadas nada econômicas a clarearem, juntas, todos os espaços da casa.
Em seus 72 anos de idade (sejam eles fictícios ou não), a única certeza de Iraci é a de que está proibida de ingerir bebidas alcoólicas: uma cirrose compromete seus dias; tempos estes que, noutrora, foram vivazes e banhados a cachaça, geralmente pura.
Enferma e esmorecida por sentir que toda vez que deita em sua cama o mundo parece girar, as manchas começaram a queimar não apenas suas costas, mas também seu juízo.
Iraci em sua cozinha
Iraci, que sempre optou por drogas caseiras para deter suas doenças, resolvera atender aos conselhos de um médico – ainda que com resiliência e muita insistência de conhecidos preocupados com a saúde de uma das mulheres mais icônicas da região.
Desconfiada do prognóstico básico de uma alergia, concluiu a própria Iraci aquilo que considera ser a origem de sua debilitação: “É feitiçaria, Vago (Iraci nunca conseguira pronunciar meu nome)! É feitiçaria, meu filho!”.