segunda-feira, 26 de março de 2012

Renan, o motorista


No décimo mês de setembro ele completou um quarto de século de idade. Renan tornou-se homem criado. Casou. Teve filho. Construiu casa. Comprou carro e por meio dele sustenta a família transportando os alunos da rede municipal de ensino em um dos muitos povoados quem compõe a cidade de Barra do Choça, na Bahia.

Renan também transporta no currículo os apelidos exóticos que carrega desde pivete. Era Piderito, que do próprio apelido gerou outro: Pida. O porquê dos apelidos excêntricos? Bom, se alguém adivinhar, quero ser o primeiro a saber!

Renan é grande homem, só não na estatura diminuta que não passou de seus 1,60m e poucos.

Em um fim de tarde de dezembro de 2011, ao som dos pássaros que cantavam descompromissados lá fora, dentro da casa de quatro cômodos, sentado no chão do piso vermelho, ele inquire a mulher para o preparo de um suco natural de goiaba. Com humildade descreve as conquistas, planejadas tão quanto administra o número de passageiros em sua van esbranquiçada.

Ali conversamos. Ele desembucha os seus planos com a voz mansa de quem não esmorece com nada. Quis casa, e teve. Quis carro, e está pagando por ele. Quis filho no futuro, mas  foi no presente a benção com a paternidade. Se a vida já tinha sentido, passou a ter mais ainda, após o nascimento de seu “pequeno”.

Com a pele naturalmente clara e queimada pelo sol, Renanzinho não herdou o branco e os olhos acastanhados do pai. “Puxou” o tom amorenado da jovem mãe, Celinha.

Renan deixou a casa da família assim que se casou. Largou o teto da prole para construir a sua própria, ali no quintal dos pais. Hoje sozinhos, seu José e dona Deonísia viram a maioria dos filhos alçar voo – os boguelos tornaram-se pássaros criados no instante em que tiveram forças para bater as asas.

Renan é moço valente, se pelo fato de carregar o leão no signo, tampouco importa. Faz amigos gratuitamente e não cobra.  Entre os povoados... Até adentrar as cidades de Barra do Choça e Vitória da Conquista... Transporta nos três minúsculos corredores dentro de sua van mais do que crianças e adultos que se balançavam nas ruas tortas de chão batido de terra e o asfalto novo da cidade. Sem pressa, paradoxalmente, ele acelera sua vida no movimento da vida de outras pessoas.

**Esta crônica faz parte da série "Cafés baianos", que conta as histórias de pessoas e dos povoados da cidade de Barra do Choça (BA) - cidade em que nasci e vivi alguns dos anos mais felizes de minha vida. 

segunda-feira, 19 de março de 2012

Mãos de folha

Foto: Rodrigo Siqueira
Nunca fui um exímio catador de café. De longe, não chegava aos pés – ou melhor dizendo, às mãos – de Missim, o famoso “mãos de folha”. Para os leigos no assunto, “mãos de folha” equivale a artilheiro no futebol, CDF na escola, ou “fera” no volante.
E se muitos são considerados os reis de qualquer coisa, ele era o rei dos corredores de café. Estirava e manuseava o pano que ampara os grãos com dedos tão hábeis quanto quem dedilha as cordas de um violão com maestria. Quando não era o pano, a peneira era a ferramenta abrigadora dos grãos úmidos que pulavam dos galhos.

sábado, 17 de março de 2012

A inscrição


Escola Estadual Profº Homero dos Santos Fortes, Paraisópolis, SP

Dona Nair, 50 e poucos anos, está na rua conversando com mães que aguardam os filhos, que desde às 7h da manhã estão defronte ao ainda quadro negro.  Desde que me entendo por gente, ou mais precisamente no alto de 1997, dona Nair carrega nos cabelos crespos estilo `joãozinho` o branco da idade. Na voz grave, bradava nos corredores de seu antológico serviço, a impotência de sua profissão: monitorar as centenas de alunos que passam diariamente pela Escola Estadual Homero dos Santos Fortes, encravada na rua que carrega o nome do sociólogo e filósofo inglês Herbert Spencer.

Em Paraisópolis, a escola funcionava apenas o ensino fundamental. Muitos anos mais tarde, deu espaço somente aos alunos de ensino médio. Hoje, abriga apenas estudantes que interromperam os estudos ao longo da vida. Treze turmas de EJA (Educação de Jovens e Adultos) dão a oportunidade para estudantes a partir dos 18 anos de idade, a retomada dos estudos.

Diferentemente de tempos em que conquistar um cadeira em uma sala de aula da comunidade era raridade, atualmente a oferta de vagas aumentou, e pode-se dizer que “não estuda quem não quer”. 

Paraisópolis tem cerca de 15 mil analfabetos, anuncia a Associação de Moradores. Em tempos que leilões Programas de Alfabetização angariam fundos, carros de som e faixas em muros e postes convocam jovens e adultos ao retorno das aulas.

Beirando o meio-dia,  no alto de uma quinta-feira de março, treze anos após pisar diariamente no “Homero”, além de dona Nair, a desde sempre vice-diretora Lais, de cabelos amarelos e olhos fortemente azulados revestidos pelas lentes de um óculos de aros verdes, cumprimenta moradores em frente ao colégio. Aproximo-me dela a fim de não resgatar em sua memória minha fisionomia, intencionando que ela me dissesse “Quanto tempo! Como você está?”.

Ele me cumprimenta como se me conhecesse. Aborto o dialógo em potencial, perguntando se o ensino fundamental ainda é oferecido na escola. Um “faz tempo que não é mais" é ecoado por sua voz doce.  Nesse momento ela ampara sua mão em meu braço, e preocupada, indaga: “Você ainda não fez sua inscrição?”. Mais de uma década mais tarde em que havia cursado a 4ª série C, eu não estava na minha antiga escola para fazer uma inscrição para o EJA. 

Queria rever os muros que me abrigaram durante quatro anos de minha vida. Treze anos depois, encontrava-me, como jornalista, a fim de não simplesmente rever os ainda funcionários de minha ex-escola, mas entrevistá-los para uma matéria sobre o cenário educacional na comunidade, que ainda, e infelizmente, continua precário, ascendendo, claro, mas a curtos passos.

Aqui você vê um blog da escola feito pelos professores.

segunda-feira, 12 de março de 2012

Como assim?


Foi com a indagação que intitula essa crônica que Hiajaira me bombardeou quando nos vimos depois de alguns anos. Na verdade foi um “Como assim?” demasiadamente surpreso, uma interrogação incrédula, uma imprevisão renegada à priori.

Meados de junho deste ano, ei-me novamente adentrando a Feira da Madrugada, local famoso pela venda de produtos de baixo custo. Localizada na região central de São Paulo, a “Feirinha”, como é chamada por alguns, foi o primeiro local onde trabalhei assim que cheguei na capital pela última vez, em 2007.

Hiajaira era uma das clientes do “Café do Trilho”, que de café não tinha nada. Num lugar minúsculo revezavam os quatro funcionários: três atendentes, o caixa e o sub-gerente. Eu era o caixa, o rapaz que ficava trancafiado dentro da saleta do lado de fora do trailer.
A nossa cliente passa por lá todos os dias. Assim como grande parte dos comerciantes que ali ganham seu ordenado.

Hiajaira é peruana. Uma linda peruana de cabelos alisados naturalmente pela genética. Pele amorenada e traços finas.  Tinha apenas 15 anos naquele tempo e adorava misto quente.

Três anos depois, regresso àquele lugar que já não é mais o mesmo. Afinal, muito se mudou por ali, desde a organização das barracas, até mesmo a área coberta que agora livra todos os comerciantes da chuva.

A menina, que agora se encontra em seus 17 anos, se surpreendeu assim que eu tirei o gravador e apanhei um bloco de notas. “Como assim?”, atacou ela. Ora bolas, vim fazer uma entrevista com você. Definitivamente ela não conseguia me visualizar com a profissão que ali incumbia. Para Hiajiara, como aquele rapaz que encontra quase que diariamente preso dentro daquele caixa havia tornado-se repórter?! A resposta foi “tornado-se”.

Podemos nos tornar nossos próprios heróis, ao invés de convivermos com o inimigo chamado "comodismo".

Veja também  operando o caixa.