segunda-feira, 31 de janeiro de 2011

Um fogão a gás II


Há três anos, a história duma mulher que sonhava ter um fogão a gás foi a chama necessária para acender em meus projetos, até então teóricos, o início do Vida em Crônicas. As narrativas virtuais começaram a engatilhar em 18 outubro de 2009, com o memorial de Vera Lúcia, a precursora, dentre tantos protagonistas emaranhados neste blog.

O ano de 2011 segue com a chama acesa e pretende fervilhar muitas outras histórias reais.




Fui cúmplice do sonho de Vera Lucia, em janeiro de 2007, quando presenciei seu grande desejo de aposentar o fogão a lenha e embelezar a cozinha com um fogão a gás. Exatos, 36 meses depois, reencontro-a. As próximas linhas retratam os dias de hoje, dessa mulher que tempos atrás separava galhos de café seco para queimar no tão palpável fogão a lenha, enquanto o aparelho movido a combustível ascendia em seus simples planos de vida.

Leia a história completa de Vera, clique aqui.

Praticamente não houve mudanças na vida de Vera. Continua a distribuir gratuitamente gargalhadas em prosas soltas. Nada minimiza sua autoestima. Ele é altiva. A falta da beleza estética não a incomoda. Está longe de ter o peso ideal para sua estatura, mas permanece com o tino ideal de uma mulher que ri de suas dietas comumente incompletas. Tem quatro filhos: dois meninos e as caçulas meninas. Permanece casada com Zé. E não briga mais frequentemente, quando ele, aos finais de semana, troca as caças de animais silvestres por arrasta-pés povoados circunvizinhos adentro.

Vera comprou, em 2008, um fogão a gás usado. Contudo, o equipamento ainda é uma teoria para Vera. Há alguns meses, está largado na cozinha. O gás do botijão chegou ao fim, ao mesmo tempo em que o dinheiro do bolso do casal, também. Entre desembolsar suados 35 reais para a troca do combustível e cortar a lenha jogada no terreiro, evidentemente a segunda alternativa é fato.

Vera também comprou uma geladeira usada. Agora, com o eletrodoméstico, não precisa mais estender a carne no sol para secar no quintal de casa. Construiu mais um quarto, depois que Elóa nasceu. E na cozinha, fez uma extensão, onde o chão ainda é batido. A sala de estar divide meia parede com uma saletinha, logo na entrada principal do lar. Há quatro quartos na casa. O chão de piso vermelho é encerado toda semana e os poucos móveis, limpos quase que diariamente, por conta da poeira costumeira por ali.

O que era um artigo indefinido, agora só não é mais definido, porque “o” fogão a gás está inoperado. Mas assim que a situação desapertar, Vera irá conseguir fazer café sem ter que labutar o devorador de gravetos secos.

quinta-feira, 27 de janeiro de 2011

MAGNObal

Por aquelas redondezas, palavra mais carregada de preconceito como Magnobal não há.

Com o passar dos anos, muitas transformações fizeram parte de sua trajetória: mudanças físicas, quanto psicólogicas. O nome foi, talvez, a única coisa inalterada, enquanto o corpo deu espaço às feições femininas. Enfrentar os julgamentos de vizinhos, que o viram crescer e que, ainda fazem-se tão intolerantes ao tratá-lo com um desconhecido, foi - e talvez continue sendo - uma árdua tarefa para ele.

Ele tem 32 anos. Adulto, encara a homossexualidade com certa naturalidade. Na adolescência sofreu com força, o que hoje ganha título de bullying. Os cabelos foram alongados. Os mamilos, também – pequenos seios apontam de seu peito. Com uma estatura alta, Magnobal não passa despercebido. As pernas grossas, quase sempre a mostra, por meio dos mini-shorts lhe expõem a bunda avantajada. Um homem, que no topo de suas três décadas de vida, sente-se uma mulher. Mesmo vivendo na bucólica e ainda conservadora Cavada 2 aprendeu a conviver com as críticas, com o preconceito e tenta, do seu modo, continuar nutrindo as poucas ambições que tem. A irmã dele, Carla, garante: “Quinho está desperdiçado aqui. Se ele fizesse um curso para chefe de cozinha se daria muito bem na vida.”

Ele cuida dos cabelos como ninguém, é o que assegura Viviane (na foto). A esposa de Benevenuto recebe o melhor amigo praticamente toda semana, quando lhe tem por ele, a cabeleira espichada e tingida, de tempos em tempos. O salão de cabeleireiro tem improviso no quarto, onde eles atualizam o papo, além de saborear os dotes culinários, outra aptidão de Magnobal.

Catou café na roça. Já foi cozinheiro noutra cidade. E até ganhou concurso amador, como dançarino. Em Vitória da Conquista, ele arranjou o primeiro emprego. Substituiu os corredores das abundantes roças de café espalhadas pelo município para exercer afazeres domésticos na casa de estranhos, em troca de salário completo. Quinzenalmente, pegava o único ônibus, em direção à Cavada 2.

A sala de aula foi ausentando-se, à medida em que a necessidade do trabalho tomou à frente das necessidades que lhe convinham naquele momento. Em 2010, retornou aos estudos, concluiu a 5ª série do ensino fundamental. Lidou com a indiferença, palestrando às demais turmas do colégio– sugerido pela direção da escola – acerca de uma temática a qual dominava mais do que qualquer discurso proferido por algum professor. Magnobal passou de sala em sala. Respondeu as perguntas diretas dos colegas. Quebrou tabus. Sem pudor, esclareceu dúvidas e rebateu chacotas. Falou de si próprio àqueles que acreditavam saber mais do que quem sentia na pele a realidade de ser homossexual.

Magnobal segue na contramão do desejo de tantos por ali, que almejam, na primeira oportunidade, pisar os pés em território paulistano. Teme deixar o berço para aventurar-se em terras que lhe são distantes. “Nunca fui a São Paulo e não tenho muito vontade de ir, não.” Ele prefere dançar a música que rege sua vida, ali mesmo. Não espera que ninguém dance com ele, mas, que ao menos respeite e conceda a passagem, para que possa além de apresentar, no palco, dignamente, a grande ambição que ainda nutre, mesmo que com certa descrença: “Meu sonho é ser dançarino, mas sei que existe preconceito quando se é homossexual como eu”.

quarta-feira, 26 de janeiro de 2011

O mistério da mina em Paraisópolis

“É uma mina”, garante enfaticamente Francisco de Assis Silva, 47, há 28 anos morador de Paraisópolis. “É uma coisa bonita, se pudesse ser preservada... Até para a molecada tomar banho. Seria um divertimento para as crianças e raiva para os pais delas”, ri.

Galdino Henrique de Souza tem 56 anos e há uma década é morador da comunidade. Proprietário de um barzinho na viela próxima à suposta mina d´água, ele revela que filas gigantescas foram formadas quando sofreram problemas de escassez de água vinda da rede de abastecimento. “Naquele mês em que ficou uns quatro dias sem água, aqui fazia fila a perder de vista”.

Localizada em uma das áreas mais precárias de Paraisópolis, o local da mina, antes ocupado por entulho e mato, agora está situada entre barracos de madeirite.

“Tanto faz faltar água, como chover, que a intensidade que sai daqui é a mesma”, diz o cantor de forró Elismar Fernandes Nogueira, 24. A água que saía aleatoriamente das vielas, agora ganhou um percurso definido devido ao cano colocado recentemente por moradores. “Era só um poço, daí a gente pôs cimento e colocamos o cano”, afirmou Elismar.

Há outras duas minas na comunidade, sendo que uma delas deu nome ao local onde fica _“Viela da mina”.

Armelinda Barbosa de Lima, 38, é recém-chegada ao bairro, mas conta que o filho de 3 anos sempre toma banho com aquela água, principalmente depois que foi colocado o cano pela comunidade. “Quando ele não quer tomar banho no chuveiro, ele vai lá”. Ela garante que não teme nenhuma doença. “Nunca tivemos nada. O sabor é até melhor que o da torneira. Parece água mineral”, diz.

Há quem acredite que ali seja uma saída de esgoto, mas segundo a recicladora Armelinda, mais cedo ou mais tarde todos acabam utilizando a água da mina quando a que deveria vir da rede os deixa na mão.

Para os moradores, se fosse esgoto ou água suja, quando faltasse água na rede de abastecimento, consequentemente a água da “mina” seria interrompida. Mas o fluxo permanece do mesmo jeito, há anos... é mina!

Vagner de Alencar, 23, é correspondente comunitário de Paraisópolis.

Escrito no dia 19 de janeiro de 2011, para o Blog Mural

terça-feira, 25 de janeiro de 2011

Claudete, a baiana que engravidou de beijo

Ela carrega o Moreno na certidão de nascimento, da mesma forma que na pele tal coloração. A idade de suas primaveras de vida ela não revela, embora ao menos três décadas delas já tenham
pedido passagem. Como não poderia faltar às mulheres baianas, a alcunha foi reduzida a uma sílaba: Clau; os mais íntimos a apelidaram e todas as pessoas adotaram a identidade.
No minúsculo município de Caatiba - vizinho à
cidade de Barra do Choça -, tão minúsculo que no site da Prefeitura sequer consta a história da cidade, ela deu o primeiro choro de vida.
Aos 23, viu as primeiras lágrimas de Bruna, sua única filha. Entre São Paulo e Bahia, aos prantos e sorrisos, vivenciou amores, desvencilhou profissões e amigos e protagonizou o ápice de sua trajetória. Há sete anos, voltou ao berço, se decepcionou com o comércio e encontrou na licenciatura a realização profissional.

Uma breve retrô nos leva a São Paulo, quando aos quinze anos, ela saiu da pacata Barra do Choça à maior cidade brasileira. O propósito seria trabalhar, mas o objetivo incubado, que não podia ser revelado, era amar e ser amada. Com o namoro, que durou dez anos, essa baiana dos doze anos aos vinte e dois anos atravessou geografias e a distância para declarar a si mesma a fortaleza de um amor.

Em São Paulo, trabalhou no ramo de confecção. Conseguiu conciliar estudo e trabalho, até que interrompeu no derradeiro semestre, o curso técnico em vestuário. “A vida mudou de lado financeiramente para mim. Trabalhei como costureira, depois na área a criação. Sinto saudades dos meus colegas de trabalho, como Alice e Delaide da Mak-Len, Jonh Baby Blue, no Bom Retiro.” Em Ermelino Matarazzo, zona leste de São Paulo, se assentou e esparramou para todas as outras zonas a alegria e o sotaque carregado em uma baianidade singular.

“Beijei o pai de Bruna, me empolguei e engravidei sem penetração. Parece piada, mas foi exatamente assim.” Casou, pois em suas palavras, não teve opção. E hoje, Bruna tem 14 anos e, por enquanto, é o grande amor – palpável – para Claudete.

“Amei e amo uma única pessoa. Sonho em ter um menino. Sempre quis ter uma família enorme, mas nem todos os sonhos se tornam realidade. Fui casada bonitinha.” Viveram juntos sete anos. Foram felizes, mas como diz a frase tão massificada nos dias de hoje “não deu”. “Fui rebelde demais. Em uma única discussão, tchau. Sai de casa com a roupa do corpo.” Claudete garante não haver arrependimentos, mas não faria dessa forma de novo.

“Sim, lógico!”, essa é a exclamação à indagação sobre um possível casamento.
“Mas morar juntos, jamais. Não quero ficar velha gagá, e só”, complementa. E como a pressa é inimiga da perfeição, para Claudete a afobação não se aplica a esse desejo. “Não tenho pressa pra casar.”

Há sete anos, retornou de São Paulo. Na terra natal, trabalhou com comércio, onde administrava um mercado, mas fechou há um ano, por decepção pessoal. Em abril deste ano, ela conclui a graduação em biologia e, em junho, termina a pós em Psicopedagogia Institucional Clínica. “Pretendo ainda fazer uma especialização em genética”. Há dois anos, ela ingressou na licenciatura, admite a dificuldade que é lecionar, contudo dribla as adversidades atuando, no sentido literal da palavra. “Me sinto uma artista ou atriz em uma sala de aula.”

“Ano passado, os alunos fizeram um documentário e escolheram a mim, como a professora, digamos, que ‘diferente’. Fizeram uma espécie de homenagem. Chorei de emoção, feito menina.” Com essas palavras, Claudete Moreno Viana evidencia a essência do que, hoje, é ser uma educadora.

Em São Paulo, ficaram somente primos e um tio. Em Barra do Choça, moram um irmão, a mãe e dois sobrinhos. A maioria dos parentes ainda está em Caatiba. Em Porto Seguro, onde nos conhecemos, a positividade dessa mulher transbaldava. “Acho que sou, até demais, às vezes.” Claudete definitivamente dá um banho de jovialidade em qualquer uma. Não amargura a ausência de silhueta perfeita, quando, na verdade, o que mais importa para ela e sem modéstia garante ter é o “sangue doce”. “Sou notada por onde passo. gosto de ser apontada como a professora que faz diferença.”

“Nosso povo é tão carente. Carece de conhecimentos, mas também de calor humano, de afeto.” Claudete tem a juventude na alma, que de longa data não pertence mais à autoafirmação de
Eunice. Graduou-se em biologia, àquele que foi o grande desejo de Losângela, não roubando-lhe o sonho, mas evidenciando uma mulher com pulso mais firme.

A protagonista desta história é uma baiana que parece tomar um banho diário de jovialidade,
considera-se uma palhaça, uma moleca, ao mesmo tempo em que uma guerreira, por não desistir de amar e de viver a vida. Ainda guarda a frustração de não ter uma família formada. Gosta de privacidade, mas não admite a solidão e garante: "Feliz de quem um dia já amou na vida.”
Leia a série "Mulheres da Cavada":

quinta-feira, 20 de janeiro de 2011

Eu Niça - Mulheres da Cavada

“Meu professorzinho!”, bradou Eunice, assim que encontrou seu ex-professor. Um abraço selou o instante entre aluna e jovem professor.

Eunice, conhecida como Niça, desistiu dos estudos assim que o professor, com quem estudou por dois anos, se mudou para São Paulo. A adaptação com o novo lecionador foi a razão por sua desistência, interrompendo o histórico escolar na quarta série do ensino fundamental.

A casa modesta de Niça não ganhou nenhum requinte. As paredes da cozinha sem reboco foram pintadas naturalmente com o preto da fumaça do fogão a lenha. As cortinas de pano colorida ainda serviam para tapar a ausência das portas nos quartos. Na sala, sem as formalidades de professor-aluno, os dois sentaram-se no velho sofá. E ali trocaram novas ideias.

“Fala com o povo de São Paulo que eu tava na roça”, justificou a presença na fotografia que foi tirada pelo amigo-professor. Uma saia e blusa pretas e um par de havaianas azuis eram sua vestimenta naquela tarde do fim de dezembro. “Hoje tô comendo tarde. Só faltou uma verdurinha” - referiu-se ao prato com arroz, feijão, farinha e galinha cozida.

Na contramão da trajetória escolar da mãe, Rutinélia, aos 17 anos, passou para o 3º ano do ensino médio. Uma realidade pouco comum às crianças da zona rural. Boa parcela dos jovens repete os estudos, normalmente pela desistência – ao trocar o lápis pela enxada -, ou até mesmo por não conseguir acompanhar o ritmo puxado das aulas. O irmão mais novo, Ednaldo, 14, cursa a sétima série e parece seguir os passos da primogênita.

Atevaldo, que já ultrapassou os 40, desistiu da escola quando chegou à sexta série. Não mede palavras, enche a boca de orgulho para falar da filha e da importância que são os estudos na vida de alguém: "Complicado é se ela ficar aqui. Vai estar formada e continuar a trabalhar na roça".

Niça e o marido haviam acabado de chegar da roça, quando receberam a visita inesperada do “professorzinho”. Separavam os gravetos espalhados pela plantação de café de um fazendeiro. Pelo serviço, ganhariam não mais que vinte reais, valor equivalente da diária, por oito horas de trabalho.

Eunice confidenciou a existência duma fotografia do professor, guardada em um álbum, desde quando ele partiu para São Paulo. Arranjou-a com algum parente e, com carinho, revelou anestesiar a saudade, quando rememorava o passado recente, na época em que eram, além de amigos, professor e aluna. “Para matar a saudade, fico olhando a foto do meu professorzinho”.

Eunice de Sousa da Silva, apesar de não ganhar mais do que oitenta reais semanais, poupou cinco deles e despachou ano passado da Bahia, um queijo coalho, como lembrança ao amigo-professor. Com as letras que insistiam em desobedecer às linhas da folha e as desavenças entre sujeito e predicado, ela destacou a simplicidade do presente e o carinho que o tempo não deixou ser apagado.

Os problemas físicos prosseguiam em sua vida, como desde sempre. As queixas de dor de cabeça, da suspeita do bico de papagaio, da terrível agonia nas pernas ainda eram narrativas corriqueiras para Niça. “É a idade, meu filho, já tô ficando velha.” Ainda que distante de completar 40 anos de labuta, Niça resmungava da “idade já tinha chegado. Que o cansaço era um martírio natural e que a vida ainda continuava com toda a aspereza possível.

Ela não mudou de casa. Não parou de reclamar das dores. Continua a amar Atevaldo e dar a vida pelos dois filhos. Desistiu da escola, pois crê que papagaio velho não aprende mais a falar. Ainda chama aquele que será considerado seu “professorzinho”. Guarda um retrato dele no meio de suas poucas fotografias. E como diriam muitas mulheres moradoras da Cavada, Niça tem a verdadeira natureza da mulher que prossegue na lida diária da vida.


Manu é ela!

Visitar grande parte dos cartões-postais de Salvador trouxe renovação ao baiano que nunca havia pisado em terras soteropolitanas, em 23 anos de vida. A fortaleza do sol no Farol da Barra, a Praça da Sé, o Elevador Lacerda fizeram-me perder a coloração amarelada da pele, assim que cheguei em Barra do Choça, na véspera de Natal.
Os parentes logo me gozavam, “ô amarelo, vai tomar um solzinho, vai” - e por mais que eu não quisesse, me livrar do calor escalcante do verão na Bahia era algo impensável. Mas foi na cidade do Pelourinho que uma pedinte me fez ter a certeza que a tonalidade de minha epiderme, de fato, não era mais a mesma. “Me dá uma moeda aí, moreno!”.

Para a noite, marquei um encontro num barzinho, na Cidade Baixa, com conterrâneos que conheci durante o tour solitário durante o dia – com muita inveja, claro, do sotaque carregado deles, que eu infelizmente não tinha. O que seria um bate-papo à beira-mar, ao som das ondas, na parte baixa da Igreja Senhor do Bomfim, tornou-se uma festa ao aniversariante Geraldo, que completava 32 anos. Cláudio, o organizador da surpresa, me levou à churrascaria onde comemoramos mais um ano de vida do amigo. Encontramos Geraldo no meio do caminho e e fomos todos juntos ao restaurante. A mesa, com reserva para 15 pessoas, contava com a presença de 9 convidados.

Entre carnes de cupins e corações, pizzas superfinas, cerveja e muitas risadas, a figura principal da noite não foi Geraldo, e sim Manuela – a garçonete. Seria uma atendente qualquer, caso não fosse detentora de uma simpatia ascendente – tão ascendente, que em pouco tempo, praticamente servia apenas nossa mesa. Fez amizade com a mesma habilidade com que carregava as bandejas.

“Qual o signo de vocês?”, inqueriu. Cada um foi revelando o seu. Eu, o último a responder, afirmei ser ariano. Quase como uma criança afoita, quando recebe um presente novo dos pais, Manuela abriu o sorriso metalizado e me cumprimentou por também, como ela, ser regido pelo signo de Áries. “Toca aqui. Eu sabia. Fala sério, os arianos são demais”. Aquela situação foi uma espécie de estopim para a que emergente simpatia desse início a uma possível amizade.

"Aqui é pra você...”, retirou do bolso do uniforme azul claro um pirulito em formato de coração. “Só porque você é ariano”. Todos riram, no mesmo momento em que ela distribuiu outros doces a cada um. Em seguida, enquanto servia pizzas de calabreza, num minúsculo pedaço de papel me deu seus endereços virtuais. “Aqui estão o Orkut e MSN.”

Entre o trabalho e a vontade de bater papo com o grupo, a garota foi falando de sua vida: 22 anos de idade, ensino médio incompleto – mas garantiu retornar ainda este ano e continuar o 2ª ano –, há poucas semanas trabalhava na churrascaria e morava não muito distante dali. "Venho de bicicleta às vezes."

O expediente acabou. Enquanto os funcionários limpavam o salão, discutíamos com o gerente a diferença no valor da comanda da mesa. Manuela, depois de se livrar do uniforme, ficou nos aguardando. Saímos juntos, cada um pro seu curso. Manuela pegou carona à pé com o gerente, rumo a sua casa, e como que uma ordem, nos intimou à adicioná-la nas redes virtuais. “Me adiciona no MSN tá! No Orkut pareço outra até pessoa. Tô mais bonita!”, sorriu.

quarta-feira, 19 de janeiro de 2011

Los angeles de Losângela - Mulheres da Cavada

Em poucos minutos, suas lamentações foram praticamente instantâneas. Com muita dificuldade, Losângela arranjou trabalho como professora na escola próxima a sua casa - a mesma em que estudou nos tempos de menina. A estima em falar das conquistas perdeu espaço para lamúrias recorrentes, entre elas, e principalmente, a de viver no restrito e pequeno povoado de onde nunca saíra.

Seus cabelos foram tingidos por uma coloração loira. As madeixas que antes tinham um castanho escuro ficaram no passado. Aos 28 anos de idade, Losângela jamais arredou o pé do povoado Cavada II, e no lugarejo, tornou-se mãe daqueles que são para ela seus dois anjos – seus filhos, hoje com 6 e 4 anos de idade.

Se em 2005 houvesse twitter, essa baiana decerto teria alcançado o Trending Topics da região. Por causa da gravidez inesperada, a boataria correu descontrolada na boca do povo. As ditas mulheres conservadoras proferiam a gravidez da moçoila como um verdadeiro despautério. “Como pode, mãe solteira?! E ainda diz que é crente”, fofocavam algumas desocupadas.

Teses, para não dizer mexericos, apontavam a razão pela qual Losângela “pegou barriga”: praga ao pai. Carlinhos, um evangélico fervoroso, muitas vezes teria julgado algumas mães-solteiras das redondezas e, graças à “língua solta”, a ingrata fama passou a pertencer à filha. “Bem feito! Vai falar das filhas dos outros e esquece as que têm em casa”, arrotavam muitos vizinhos.

A filha de João Carlos sempre sonhou ser professora; graduar-se em biologia era sua mais antiga ambição. Losângela foi uma das primeiras no povoado a ingressar no ensino médio. Junto com o colega de classe Benevenuto enfrentaram o desafio de estudar na cidade. Na garupa da moto do amigo partiam, diariamente, encarapitados numa Strada avermelhada, os 27 quilômetros das estradas de chão batido, que os direcionavam ao Colégio Estadual Dária Viana de Queiróz, no município de Barra do Choça. Durante um ano, foi esse o cenário dos jovens estudantes, até que em 2004 foram destinados recursos do Governo para o transporte escolar.

O primeiro filho de Losângela não demorou a ganhar um irmãozinho. O que para a população tornou-se mais assunto a perder de vista. Novamente, sob o título de mãe-solteira, ganhara notoriedade com a chegada do segundo filho.

Em 2007, enfim, adentrou a sala de aula, mas para sentar-se à frente de algumas dezenas de alunos. Com muita dificuldade, e insistência à Secretaria de Educação, foi formada uma turma de jovens e adultos. Com o salário que passou a receber custeou o estudo superior. Neste ano, oficialmente, ela receberá o diploma de graduação em pedagogia. A turma de biologia não vingou. Cursar pedagogia foi a alternativa para a garantia de emprego.

Para essa baiana, professora e mãe de dois filhos, as coisas na comunidade onde vive permanecem do mesmo jeito, que aquele lugar não dá futuro para ninguém, que as coisas não evoluem, como exemplo das roças de café que estão acabando. São Paulo é o lugar da concretude dos sonhos, pois acredita que na cidade grande as pessoas têm oportunidade.

Losângela deixou a casa dos pais dia 15 de janeiro de 2011, quando casou-se com aquele que será o padrasto de seus filhos. Fábio tem pouco mais de 30 anos, é morador da Cavada I e trabalha na lavoura. O pai dos filhos da moça mora noutra cidade e pouco visita os herdeiros.

Nas vésperas do casório, o semblante da garota lhe fugia empolgação. O matrimônio parecia não vir com tanta ansiedade - ou até mesmo com nenhuma. Losângela mostrou repúdio ao formalismo comum aos casamentos: se possível, dispensaria o branco do vestido e a marcha nupcial. Seu desejo era adentrar a igreja vestida de roxo, ao som de hip-hop. Porém, feliz, ou infelizmente, isso não aconteceu.

Sem passagem marcada para São Paulo, no máximo, ao povoado Cavada I, aonde se mudou para a casa do marido, Losângela resiste em sair da teoria à ação e demarca seu futuro com ambições que saíram do pensamento somente ao papel. Como em uma novela em capítulos repetidos, a protagonista dessa história real tenta, de sua forma, descobrir alternativas – quem sabe postergá-las – a fim de encontrar a felicidade em um lugar ao qual declaradamente não é feliz.

Leia mais sobre a série "Mulheres da Cavada": A prima primeira

Foto: Losângela (à dir.) e a cunhada Nete

sábado, 15 de janeiro de 2011

A prima primeira - Mulheres da Cavada

Os dois não precisaram se encolher sob o guarda-chuva tamanho família. Era tardezinha, verão baiano com chuva forte e passageira no final do dia. Dezembro estava abrindo passagem para janeiro de 2011. Rosineide era a dona do guarda-chuva, e essa é somente sua alcunha no RG; desde moleca, ganhara o apelido de Rosa.

Rosa é negra, os cabelos crespos - estilo Joãozinho - perderam o formato há algum tempo. Agora, espichados, ganharam um escorrimento em direção aos ombros pequenos. Seu riso continua solto, e diferente de sua estatura, é graciosamente esticado. Os reencontros bateram à sua porta aquele dia chuvoso. Após três anos, o primo que morava em São Paulo, visitava sua casa. Lembranças de um passado fresco na memória dos primos foram recordadas, enquanto o café preto e o pão de leite eram colocados à mesa.

Rosa é a prima primeira da parte paterna da família. Assim que adentraram a casa, no povoado Cavada II, deram início à prosa de algumas horas. Rosa começou a estudar; na escola, queria aprender a assinar o nome. Enquanto o primo já escrevia mais histórias do que contava.

Reunidos na sala, careceram afastar o sofá de posição. A chuva forte trazia garoa para dentro dos cômodos. No quarto, a força água fez mudar de cor a parede rosada de cal. Os chuviscos não atrapalharam as recordações, eternizadas nas fotografias feitas em São Paulo, num passado que datava 15 anos: o primeiro lugar que a fez sair do povoado e ao qual jamais retornou.

Rosa tem dois filhos: Jane Cléa, de 10 anos, do primeiro casamento, em que enviuvara-se, e Pedro Henrique, de 8, fruto do casamento com Valmir. Pedro é Pedrinho. Jane é Janinha. E Rosa, Rosinha.

Os primos partiram para a varanda. Observaram as fileiras de água cair do telhado e os motoqueiros cruzavam as poças formadas pela chuva. Distribuíram cumprimentos: “Boa, fulano!”, “Boa, cricano!”.

“Tu tá com que idade, Rosa?”, o primo a curiou. “Nem sei" – respondeu ela. “Deixa eu te mostrar o RG”, apressando-se, em direção ao quarto para apanhar o documento.

Nascida em 29 de setembro de 1980, Rosa pisou os pés pela primeira vez na sala de aula em 2010, para aprender assinar o nome e, quem sabe, memorizar sua própria data de nascimento. Com três décadas de vida nas costas, Rosinha é diminuta na estatura física, mas com o mesmo sorriso inocente e a mesma ternura estampada nos lábios negros. Casada com Valmir e prezando a saúde dos dois filhos, seu maior sonho não é retornar a São Paulo, mas se fixar por ali mesmo, na Cavada II, onde pretende colocar cerâmica no piso da casa e forro no quarto do casal.

Foto: Rosineide na sala de estar de sua casa.

Leia outras histórias da série "Mulheres da Cavada".