segunda-feira, 19 de novembro de 2012

O último grito

Toda noite, eles gritavam juntos e ao mesmo tempo separados. Ele, em seu quarto – a menos de dois metros do dela –, naquela casa de cinco cômodos erguidos em meias paredes encobertas por centenas de telhas cumeeiras.

Enquanto a noite se aprontava, ele antecipava seu berro, sem exalar uma única palavra. O brado ecoava para dentro de si. Eram orações que, sem aves-marias e pai-nossos, poderiam se revelar simplesmente em bate-papos com Deus. Ele, que não pisava numa igreja há muito tempo, sabia muito bem que não precisava necessariamente de uma para pedir ajuda. Implorava a Nosso Senhor apenas para dormir tranquilo. E, principalmente, para ver sua vizinha de quarto adormecer serena, sem gritos sôfregos.

No entanto, parece inútil. Eles chegavam toda noite; vorazes. O Deus em que ele se apoiava para cessar os berros cotidianos daquela mulher era o mesmo em que contestava sua atuação.

Pôr-do-sol no povoado Cavada II

Os gritos dela começavam quase como rugidos – como a voz de um cão raivoso no aparto de um predador prestes a atacá-lo. Iniciam breves e logo se tornavam contínuos.

Enquanto isso, ele agarrava o choro para não deixá-lo escapulir; rangia os dentes; comprimia o travesseiro na cabeça como se a almofada fosse o bastante para interromper os berros que invadiriam a casa logo em seguida.

As dores iam rasgando, sem pena, o corpo daquela mulher. Primeiro, o braço; quase como uma navalha desfiando por dentro sua pele fina e alva, que evidenciavam as veias roxas no período friorento. Então, de repente, as dores se aportavam noutro canto do corpo: migravam para as pernas, rosto, pescoço e se ancoravam em seu seio, porto de onde tudo começou. O peito esquerdo era o refúgio de um câncer maligno.

A outra mama já havia sido arrancada há sete anos, quando, pela primeira vez, a doença – ainda benigna – ocupara seu seio direito. Naquela época, ela deixara para trás o pequeno povoado baiano onde morava, para partir para São Paulo, ao lado dos filhos, em busca de tratamento médico adequado. As ervas do mato e o pedido de bênção não seriam suficientes.

O traslado deu certo. Após meses migrando, quase que diariamente ao hospital, a doença expelira de seu corpo. Exatamente no mesmo ano em que ele abrigara dois seres: os gêmeos Daniel e Daniele, hoje com 15 anos.

Alguns anos mais tarde, as dores decidiram regressar. Os cabelos ralos acastanhados foram desprendendo, pouco a pouco, entre seus dedos. A peruca que, anos antes, escondia o couro cabeludo desnudo, não era a mesma: as madeixas estavam um pouco maiores, acima dos ombros. O tom era mais claro. Como então esconder a franja que aparecera repentinamente?

– Vagner, vem aqui!, anunciou a voz de dentro do quarto ainda trancado. Ela estava defronte à penteadeira, ajeitando a franja que ainda a desconsolava.

– Como estou?, inquiriu-o. – Está horrível, mãe – respondera francamente ele. – Está horrível essa camiseta do Michel Jackson ­– completou a frase antes que a brincadeira não fosse compreendida a tempo.

Sorriram naquele dia em que o primogênito fora incumbido de vê-la, ainda feliz, lutando corajosamente, não pelos cabelos que haviam sido jogados no lixo, mas por aqueles que cresceriam brevemente.

E eles foram nascendo novamente quando as seções de quimeoterapia e radioteraperia chegaram ao fim. Era o começo do fim.

Vagner tinha 18 anos quando soube que nunca mais veria aquela mulher. A primeira pessoa que vira, assim como o mais velho da prole, os cinco filhos darem o primeiro choro. Agora eram eles quem acompanham seu choro, seu gritos.

Nesse mesmo ano, depois que um médico itinerante passara em casa para uma visita costumeira, e ela o revelara que estava com câncer de mama, Vagner descobriu que, durante três anos, ela sabia exatamente de tudo aquilo.

Os medicamentos caríssimos já não surtiam mais efeito. Enquanto seus irmãos dormiam, pacíficos, no quarto ao lado, diariamente Vagner bradava, solitário, no seu. Ele que sempre fora o coadjuvante de todo aquele sofrimento. 

Ele sentia que sua mãe explodia toda raiva e sofrimento naquelas dores, enquanto suplicava e gritava por Nossa Senhora do Céu e por Meu Pai. Gritava, como se apenas o grito quase como a súplica em piedade, pudesse livrá-la daquela agonia insuportável. 

A dor que, muitas vezes, Vagner quis empregar em si próprio, para não ver sua mãe sofrer tanto. A dor que eu não podia arrancar com a mão e jogá-la boqueirão abaixo.
Encobria a cabeça com o travesseiro, já molhado; tentava desviar a atenção do som que disseminava pelo quarto vizinho em tons agudos e que brigavam com sua mudez, com sua inércia.

Por anos, até mesmo ao som dos grilos baianos ou das noites – raras e silenciosas – de São Paulo, foram as súplicas que invadiam seu sono e sonhos (e ainda invadem!).

Certa vez, no topo de uma tarde de sol na Bahia, as dores pareciam estrangular o pescoço daquela mulher. Ela queria apenas presença de Vagner, ao seu lado. Seria, talvez, sua anestesia, seu conforto; embora elas permanecessem com toda a brutalidade, cortando sua garganta, invisivelmente.

Nossa casa, em 2005

Nada disseram um ao outro. Vagner se aproximou dela, como se o abraço fraterno apaziguasse o mínimo que fosse, aquela dor. Abraçaram-se. A medida que o aconchego comprovava o amor entre mãe e filho, ela não queria alastrar sua dor, tão insuportável, que, para ela, não podia ser mais de ninguém.

Sim, aquela mulher era egoísta de sua dor. Enquanto debulhavam-se em lágrimas, ela tentava, paradoxalmente, prender-se e desprender-se de si a ele: “Vai ser pior assim”, dizia, em choro.

O último abraço que deram fora em uma noite em que, magrinha e fraca, ela dispensou a ajuda de sua irmã, para carregá-la à ambulância que a aguardava do lado de fora de casa, às 3h30.

– Vagner... – chamou o filho, quase em sussurros. Ela sempre soubera que ele estava acordado durante todas aquelas noites.

– Oi... ­– respondeu, levantando-se da cama, em direção à sala onde ela o esperava.
Mesmo sabendo de tudo, apenas pelo tom de sua voz, era como se aquele dia, de fato, fosse a sua despedida.

– Tchau, meu filho ­– disse a ele, dando-lhe um abraço e um beijo no canto direito do rosto.
– Você vai ficar boa, viu? ­– respondeu, mesmo sabendo que, na verdade, o olhar e o silêncio diziam mais do que uma dezena de frases feitas.

Assim que o motor da ambulância anunciou sua partida, o silêncio daquela casa foi quebrado pelo choro de Vagner, em soluço.


No alto de suas exatas quatro décadas de vida, Osmilda fizera o máximo possível para não sair de casa. 

Mas as dores então cessaram no dia em que ela deixara aquela mesma sala, para viver a cinquenta metros dali, debaixo do pé de angelim, o pau mais antigo das redondezas, ao lado das folhas e flores sobre si e o canto dos pássaros.