segunda-feira, 21 de abril de 2014

Beijo com sabor de vinho tinto

O Crossfox prata “apagou” duas vezes antes de adentrar, por completo – ainda que tortamente –, a garagem. Enquanto ela carrilava o portão, prendendo-o com correntes e cadeado, as sandálias havaianas de Fabiano estalavam no chão, em sintonia – ou não –, com o barulho da sacola de papel branca e laço preto que trouxera naquela noite, minutos da véspera de Natal.



 Fabiano estava de camiseta básica, vermelha, e bermudão azulado. Continuava com o mesmo sotaque paulistano e sorriso luminoso. Até uma hora antes, eram dois seres solitários em suas casas, largados em seus respectivos sofás, em meio a uma segunda-feira preguiçosa que inaugurava o período de férias.

Treze quilômetros depois, o contato via whatsapp deu lugar ao face a face, olho no olho. Suas mãos, que até então apenas digitavam o teclado do Iphone, na zona leste, se encontraram com as dela, na zona sul, ainda na garagem, em antecipação ao abraço acanhado, em seguida.

 Das mãos de Fabiano também vieram aquilo que ele chamou de “presente”. Dentro do embrulho um vinho seco italiano e um panetone de chocolate. “Pra você”.

O panetone ficou intacto; ao contrário do vinho. Havia somente duas taças no armário: o suficiente para embebedarem a noite.

Completadas até a metade, penetraram à sala cada um com a sua taça entre os dedos. Já esparramados sobre o sofá de três lugares, brindaram não sei o quê, ao som de ritmos aleatórios da MPB que tocavam na rádio Nova Brasil FM e invadiam o cômodo por meio do home teather com caixinhas de som penduradas sobre o alto das paredes.

O beijo não demorou a ser dado. “Vem aqui”, disse Fabiano abreviando o toque nos lábios, enquanto arrastava o corpo sobre o seu. Seu beijo permanecia leve e envolvente, como seus dedos finos que tocavam seu rosto.

Ali, não fizeram juras, embora tenham discutido uma relação que nunca havia sido consumada.

O vinho e as canções românticas, que se alastravam pela casa, eram a trilha sonora daquela história, que, há pouco mais de um ano, no entanto, ainda se fazia por meio de momentos paradoxalmente intensos e vazios; vivos e escuros.

E naquela segunda-feira que se resumiria a um dia meramente reflexivo (ela estava sozinha em casa, resgatando momentos e memórias), Fabiano então invadiu seu sossego através de uma mensagem que poderia ter sido simplesmente rejeitada.

Porém, como ser racional quando seu coração pede apenas que você viva?! E ela decidiu viver: viver aquele beijo na sala; aquela transa na cama; aqueles beijos apaixonados; aquela noite inesquecível.

 Às 10h, um abraço e um “Feliz Natal, Feliz Ano-Novo” foram anunciados, assim que o portão se fechou, selando a despedida.

domingo, 13 de abril de 2014

Bicas a pipas

Por aqui as pipas poderiam pintar o céu naturalmente azul.
Não há emaranhados de fios como nos grandes centos urbanos.
Porém, por aqui elas não existem.
Os meninos preferem bicas a pipas.

As pipas poderiam irritar os pássaros:
Os únicos donos dos ares.
Mas não.

As andorinhas voam baixo, fazem manobras espetaculares;
Batem, velozmente, suas asas, sem precisar de mais nada.
Mostram que são livres o suficiente
Para nem precisar competir com os papagaios falsos. 

Os meninos preferem bicas a pipas
Trocam a linha pelo cabresto de um cavalo brabo,
Com um desafio muito mais atraente: amansá-lo.

Por aqui não há pipas;
E sim peladas nos fins das tardes de quartas e sextas-feiras.

Sem cerol e linhas nas mãos,
São pés ágeis e calejados
Que correm rumo à bola no único campo de futebol de várzea,
Cercado de outros pés: de café e abacate.

Por aqui não existem pipas,
Embora elas sejam a forma mais simples de chegar às nuvens.
Nuvens que chegam a ser do tamanho das árvores.

Os meninos preferem pisar firme no chão
Estar entre orquídeas que brotam entre cravos e margaridas
Andar a cavalo, nadar no rio à beira de suas casas, tomar banho de bica
Voar com suas próprias asas, sem carecer de pipas.

Fotos (jan/2014 - Povoado Cavada II, Barra do Choça/ BA)














terça-feira, 8 de abril de 2014

Feitiçaria

Sob a luz das frestas de sua casa alugada, coberta de telhas de cerâmica, Iraci levantou -- com bastante dificuldade -- a blusinha rosada e florida que vestia, para exibir as manchas vermelhas e misteriosas -- parecidas a queimaduras -- que há meses envolvem suas costas.
Já com a pele branca totalmente flácida, em seu rosto enrijecido é quase impossível computar a quantidade de rugas que deixaram para trás a mocidade da mulher que nunca conseguira se queimar com o sol tão cotidiano quanto castigador.
Os pés calejados de Iraci

De corpo miúdo e frágil, as pernas de Iraci estão fininhas e fracas; cambaleiam mesmo nos passos mais curtos. As mãos trêmulas conseguem suportar somente o peso da faca e do fumo de corda quando prepara o cigarro de palha do qual nunca conseguira abandonar o vício.
Sua voz também está diferente: poucos são os dentes que se mantiveram em sua boca, já murcha; seus cabelos lisos continuam tão cândidos quanto maltratados, sempre aprisionados a uma xuxinha, também cor de rosa, que, involuntariamente, combina com o restante de seu vestuário envelhecido.
“O advogado (ou adevogado, como costuma dizer) jogou no rumo 72”, balbuciou Iraci, que, há menos de um ano, conseguira finalmente aposentar-se por tempo de idade. Anos estes dos quais se esquecera com o tempo, ou, na verdade, nunca os soubera de fato.
“Sou a caçula, a derradeira das muié. Finada Mariazinha morreu já faz um bocado de tempo, assim como seu Zé”, rememora, tentando traçar um paralelo, a partir de sua memória frouxa, seu tempo de vida com o dos irmãos que já se foram.
Tiraro três retrato meu. Dero 65, 70 ano... Mas o adevogado disse que não tinha como eu ter menos que 72”, sentencia ela.
Agora, Iraci pode dizer quantos anos possui – embora talvez não necessariamente sejam os seus.
Com o dinheiro da aposentadoria -- retirado mensalmente no primeiro dia útil do mês -- são pagos a feira (para a compra de cereais e mistura), a conta de energia e o aluguel, no valor de R$ 80. “Vou recramar dona Maria desse preço. Tá muito caro, meu filho”, lastima.
É nessa residência que Iraci mora com o filho Marcelo.
Depois de viver como um errante, ele então decidiu ir para os braços da mãe. “Ou do dinheiro dela”, inteiram as bocas miúdas.
Aos 32 anos, Marcelo é o caçula dos três filhos homens de Iraci. Exceto ele, o restante dos irmãos deixou a Cavada II para rumar a São Paulo, e voltar de vez em nunca. “Tem como tu jogar os nome dos meus irmão na internet, para ver se nóis consegue achar eles?”, sonha ele.
Marcelo não passa dos 1,65 m; tampouco dos 60 kg. Possui uma janela entre os dentes escassos e nunca se aparta de um chapéu surrado que cobre os cabelos ralos e anuncia a chegada da calvície.
A casa onde convive com a mãe tem quatro quartos (num total de dez cômodos) e uma área ao fundo repleta de pés de mamão, abóbora, café e outras hortaliças vencidas pelo mato alto que impede a fertilização das frutas e dos vegetais.
Na primeira, das duas salas, sem mesas e cadeiras, tampouco um quadro qualquer pendurado nas meias paredes, quem enfeita o espaço é uma motocicleta Titan KS, seminova, adquirida com parte do valor do salário de Iraci.
Por ali, há apenas uma porta em um dos quartos, que são tapados por cortinas de pano com estampas de peixinhos coloridos, vizinhas a uma gaiola que aprisiona um rolengo – típico passarinho da região.
As meias paredes da casa de Iraci

Um aparelho de rádio a pilha barulha a segunda sala ao som de emissoras mal conectadas que parecem apresentar apenas comerciais. Já no quarto, de Marcelo, uma tevê antiga, de 14 polegadas, está conectada a um aparelho de DVD. Sobre ela, está ainda caixa de sapato que guarda nem meia dúzia de filmes: um pornô e outros “de luta e de cobra”, como garante Marcelo.
Na casa de Iraci o chão tem o piso vermelho, e a poeira que sai da estrada forma tapetes de pó por todo o ambiente. Lá, a água não cai na torneira, embora haja distribuição no vilarejo. Mãe e filho preferem tomar banho de balde a sentir a água cair do alto de chuveiro sobre as suas costas. A luz de duas telhas plásticas, encaixadas às de cerâmica, ajudam as lâmpadas nada econômicas a clarearem, juntas, todos os espaços da casa.
Em seus 72 anos de idade (sejam eles fictícios ou não), a única certeza de Iraci é a de que está proibida de ingerir bebidas alcoólicas: uma cirrose compromete seus dias; tempos estes que, noutrora, foram vivazes e banhados a cachaça, geralmente pura.
Enferma e esmorecida por sentir que toda vez que deita em sua cama o mundo parece girar, as manchas começaram a queimar não apenas suas costas, mas também seu juízo.
Iraci em sua cozinha
Iraci, que sempre optou por drogas caseiras para deter suas doenças, resolvera atender aos conselhos de um médico – ainda que com resiliência e muita insistência de conhecidos preocupados com a saúde de uma das mulheres mais icônicas da região.
Desconfiada do prognóstico básico de uma alergia, concluiu a própria Iraci aquilo que considera ser a origem de sua debilitação: “É feitiçaria, Vago (Iraci nunca conseguira pronunciar meu nome)! É feitiçaria, meu filho!”.