terça-feira, 28 de setembro de 2010

Será que cabe mais um?

“Gente, um passinho pro fundo, por gentileza!”
“Pessoal, vai girando a catraca aí!”
“Um passinho pra cima, senão a gente não sai!”
“Pessoal, vai passando aí pro corredor!”
“O fundo tá vazio, gente!”

vídeo Youtube

Para quem nunca teve o desconforto em transitar pela capital paulistana no sistema público de transporte, em especial nos micro-ônibus, talvez desconheça as expressões destacadas acima. Embora não seja difícil remetê-las à realidade do que é a locomoção em São Paulo para quem utiliza uma lotação.

“Tô numa lata de sardinha”. Antigamente, poderia até considerar válida essa metáfora. Consideremos que a latinha de alumínio, com aproximadamente quinze centímetros de comprimento, esmague o peixe no espaço limitado. Mas, considerar ‘enlatado’ dividir com mais de 60 pessoas o interior de um micro-ônibus, particularmente é ignorar o termo “injustiçado”.

No painel na parte interior do veículo é onde se costuma ficar a capacidade ideal de passageiros transportados. Aliás, costumava-se ficar, pois em muitas de tantas viagens diárias, um olhar mais atento fez-me perceber que, em muitos carros, não é mais informada a quantidade de pessoas que poderiam viajar em pé.

Nas lotações que não foram pintadas, ou deixaram em branco o dado, simbologicamente apresenta que são 13, aqueles que não teriam direito ao assento. Se é de fábrica a omissão, eis aqui outro questionamento.

Entre 20 a 25 pessoas sentadas. Cerca de 13, em pé. Uma soma de menos 50 cidadãos, que, de maneira ‘confortável’, poderiam locomover-se no interior da famosa lotação. Hoje, um dado descartável, meramente ilustrativo, pois “sempre cabe mais um”, ou espera-se que caiba.

O cobrador deixa explícita a intenção de sempre mais um subir um degrauzinho, e dessa maneira mais um passageiro é esmagado dentro do veículo.

Falta de educação, estresse, cansaço e demais predicações compartilham o mesmo espaço, o mesmo meio de transporte. Viajar em pé em horário de pico? Sempre cabe mais um. Um empurrãozinho aqui, outro acolá. No contexto atual nem mesmo os horários alternativos amenizam a superlotação. Conseguir com que alguém, caridosamente, segure a bolsa, sacola ou qualquer objeto que carregue consigo é também outra sorte.

Longe de mim generalizar, todavia como cidadão que vivencia empiricamente esse sistema, encontrar alguém solidário, que transporte a bagagem, enquanto você luta por um mísero apoio, batalhando trinta centímetros à sua frente para, ao menos, descansar o pé já fadigado pela inércia do percurso é raridade muitas vezes.

Em geral, locomover-se sentado na poltrona de um micro-ônibus é regalia àqueles que ficaram, certamente, dezenas de minutos à espera do privilégio de ir acomodado para casa, após filas quilométricas no terminal.

Será egoísmo não querer que o outro ‘aconchegue-se’ mais? Ou a solidariedade nos faz permitir que sempre caiba mais um, que é fácil subir mais um degrau quando se está quase que impossibilitado de se mexer?

Será simples, a passagem pela catraca como se pela frente não tivesse mais ninguém?
Será que cabe mais um, ou eu ou você somos mais um que não cabemos nessa realidade diária e árdua?

O homem que transforma sucata em arte

Um artista:
Antônio Ednaldo da Silva -
popularmente conhecido como "Berbela"

Um local:
Paraisópolis - segunda maior favela de São Paulo



"É na oficina alugada de dois cômodos, dentro de um estacionamento e mais treze casas, que o pernambucano Antônio Ednaldo da Silva transforma velharias em obras de arte. Tornou-se celebridade na comunidade onde vive e conta que até a Modonna não resistiu ao seu talento."

Quem é esse artista? De onde veio?

Cabelos castanho-escuros encaracolados, presos por um elástico. Pele morena. Rosto enfeitado com um bigode modesto sob os lábios carnudos. De camiseta azul. Calça jeans, já consumida pelo tempo de uso e sapato que mais parecia uma botina.
Similar a trajetória de milhares de nordestinos que vislumbram na capital paulistana, a esperança de um futuro melhor, a história de "Berbela", apelido do pernambucano Antônio Ednaldo da Silva, não é diferente. Natural de Pernambuco, desembarcou em São Paulo em 2001, mais precisamente em Paraisópolis, com a esposa e os quatro filhos.

A descoberta do dom

A habilidade com o aparelho de solda é de longa data, Berbela sempre trabalhou com esse serviço, mas a fabricação de obras de arte surgiu por acaso.

Tudo começou quando, em visita ao parque do Ibirapuera, o filho mais velho, de 13 anos na época, pediu ao pai uma bicicleta, igual as do parque. Um pedido caro para quem ganhava pouco. Mas como não podia comprar uma, o pernambucano pensou em personalizar a que tinha.

No dia seguinte, Berbela resolveu 'fazer', ou melhor dizendo, enfeitar a bicicleta simples do primogênito. “Não estava fazendo nada de serviço. Peguei a bicicleta que ele tinha e fiz do mesmo jeito da que ele viu lá. Cortei no meio. Arrumei uns canos d'água. Emendei e fiz uma bem grandona como ele queria”, revelou o artista, que naquele momento autodescobria seu talento.

Ao chegar da escola, o filho não se conteve com a "velha" bicicleta, que havia sido completamente transformada, e até batizada: “Berbela”. Registro esse, que não ficou restrito ao veículo. A partir daquele momento, todos passaram a chamar Antônio Ednaldo da Silva com o mesmo nome de sua primeira criação. “Eu vi esse nome lá no Pernambuco e achei bonito”, revelou. Aos poucos, a bicicleta passou a ganhar inúmeros adereços. O primeiro item foi um motor. O que era bicicleta tornou-se um "triciclo", composto ainda por dez cornetas, uma televisão, um ventilador, um rádio e quase duas mil lâmpadas coloridas.

A criação das "motobicicletas"...

Em 2002, com a Copa do Mundo, o veículo recebeu os tons verde e amarelo. Ela é utilizada por ele para passear, ir ao shopping com a família. “Eu saio com a Berbela mais pra passear, pra ir ao shopping, pois tem lugar pra pôr os meninos e cestas pra colocar as compras”, conta. Das quatorze bicicletas criadas por ele (incluindo as miniaturas), três delas são motorizadas.

Em 2006 'nasceu' a Berbelinha, declaradamente considerada por ele, a xodó. E não é para menos, a ornamentação da "magrela" - que convenhamos, não é mais magrela mesmo, pelo menos nas mãos de Berbela - espanta qualquer um que se tem uma concepção formal do que seja uma bicicleta: são mais de duas mil lâmpadas coloridas, três telas de DVD e um rádio, ligados por uma bateria presa ao veículo, possui alarme de segurança, sirene, e ainda uma caixinha exclusiva para armazenagem dos controles-remotos e ferramentas.

E claro, as cores verde e amarelo predominam no veículo com três bandeiras brasileiras hasteadas em homenagem à Copa Mundial, realizada naquele ano. “Tem tudo nela. O que você pensar tem”, reforça ele.

Outras obras de artes (até vocalistas da banda Calypso)

Velas de carro, parafusos, escapamentos de moto, rodas. diversas... Tudo em suas mãos é transformado em arte: baratas gigantes, escorpiões, lacraias, centopeias, abelhas. Há bichos feitos de lata, soltos pela oficina do artista, expostos pelo chão e paredes. Até artistas da música popular caíram nas graças do artista. As esculturas de Joelma e Chimbinha ficam lado a lado, bem em frente a oficina. “Eu fiz primeiro o Chimbinha. O povo ficou insistindo até que fiz a Joelma também. Ela ficou um pouco descabelada, mas tudo bem”.

O amor de Ednaldo ao que faz ultrapassa o que se chama de racionalidade. para muitos. É mais do que um mero ofício. Os olhos do nordestino entregam a paixão que sente ao que faz. “Às vezes eu tô aqui e até falo com os bichos. Eu não tenho estresse. Eu lavo eles. Dou banho. Faço pintura pra não eles enferrujarem. É assim, eu não gosto de ver minhas coisas maltratadas".

Obras de artes X Casamento

Casado há quase 22 anos, ele relembra que no início da fabricação das obras, a esposa não o apoiou. “No começo ela achava estranho. Me chamava até de abestalhado, de doido". Mas engana-se quem acredita que Ednaldo tenha feito faculdade ou até mesmo um simples curso em artes plásticas: “Nem meu nome eu sei assinar direito. Eu não quero estudar não. Nunca gostei”.

HIstórias bizarras...

Ele conta que o único acidente que sofreu aconteceu quando uma das duas rodas do veículo se soltou ao viajar a 100km/h e, ao invés de ajudá-lo, um motorista parou o carro para tirar fotos do ocorrido.
Outro caso interessante aconteceu há 7 anos, quando uma viatura de polícia o abordou pedindo os seus documentos e os da bicicleta motorizada."Eu disse aos PMs que só tinha o RG, que havia tirado há poucos dias. O policial perguntou o era aquilo [a bicicleta]. Ligaram o ventilador. Ficaram olhando... Pediram desculpa e perguntaram se podiam tirar foto”, relembrou o caso.

Madonna quis conhecê-lo

Em Paraisópolis, ele já se tornou figura popular. Adquiriu os quinze minutos de fama ao participar de vários programas de televisão. E ainda confessa que até a rainha do pop não resistiu ao seu talento, quando ela apresentou-se em SP na última turnê: “A Madonna mesmo queria me ver no estádio do Morumbi, mas estava chovendo e eu não pude ir".

Dificuldades

Embora a felicidade estampada através do sorriso tímido, ao falar de sua vida , ele lamenta não ter um local adequado para guardar e fabricar novas peças: “Eu tô meio triste porque tô vendo a hora de vender isso aqui e não ter onde trabalhar”.
Atualmente o que garante o sustento da casa é a renda da esposa e dos filhos que trabalham. Ele afirma que o que ganha com os trabalhos de soldagem consegue apenas quitar as contas do aluguel da oficina, água e luz.

O pernambucano sonhador

“Enquanto vida eu tiver, quanto mais pra frente... Mais vontade eu tenho de fazer mais coisas. Só Deus pra me empatar. Eu ia fazer coisas inacreditáveis. Algo pra ficar na história de São Paulo”.

Qual é o seu rock?

Você já parou para numerar quantos estilos diferentes de rock existem?
Não? Então é melhor parar um pouquinho, se quiser realmente saber...
Pois já vou adiantando: tem estilos pra caramba!

Ao longo dos anos, o rock tem admitido muitas influências de outros estilos, de maneira a demarcar outras variações do movimento, e claro, outras tribos.
Aqui será conhecida a tribo de Evandro Aparecido Wenceslau Oliveira, ou melhor dizendo, do "Cavera", pois essa é a alcunha do jovem roqueiro.

Enraizado nos Estados Unidos, nos idos da década de 1970, Punk rock é um movimento musical e cultural, que tem como filosofia o "faça-você-mesmo". Conhecido por viver da sua própria forma sem que ninguém ou nada possa impedir, o punk é composto por músicas simples, rápidas e agressivas, o estilo aborda ideias ligadas aos problemas sociais e políticos, guerra, violência. Além de relacionamentos, diversão, sexo, drogas e temas do cotidiano.

Meu estilo Punk Rock

Evandro, o Cavera
Ele tem 19 anos, e desde os 12 adere ao estilo Punk rock, que tem as roupas pretas como marca. Sempre com jaquetas de couro e vários acessórios nas vestimentas, "Cavera " expressa seu estilo música e vida.

E não para por aí... Ainda com 6 piercings e 7 tatoos e cabelo à la moicano, o jovem afirma sua paixão pelo punk e se considera um típico amante do rock.

Munido com seu inseparável violão, quando não está com um skate nos pés, é nas horas vagas, que junto com os amigos, ele compõe e troca ideia com os "manos". Para ele, os pertencentes a essa tribo não podem ter medo e devem sempre ser movidos pelo instinto de novas aventuras."Somos conhecidos por viver fazendo loucuras", afirma.

Em virtude do amor à música, ele revela sua identificação pela poluição sonora. Há 3 meses montou a banda Riff's Cortantes, inspirada em grupos do gênero nacional, como Raimundos, Garotos Podres e até nos

sexta-feira, 17 de setembro de 2010

Vigilantes do Tráfico




















Eles são jovens.
Adolescentes
que sequer beiram a maioridade.
E de forma prematura, encontram-se no “mercado de trabalho”.
Eles são Vigilantes.
Vigilantes do Tráfico


A noite não é o sinônimo do prepúcio da vigília. O trabalho começa bem cedo, o sol mal se pôs e os vigilantes já estão a postos, independentemente de como o tempo esteja, seguindo como estabelece os direitos trabalhistas: oito horas de serviço + remuneração - só não lhes é fornecido o vale transporte ou alimentação, pois as residências dos "trabalhadores do crime" ficam na rua debaixo.

A empresa para qual eles exercem o ofício chama-se “Biqueira*” - a quem conheça pela alcunha de Boca de Fumo, apelidada de "Boca". Cada vigilante assume a porteira de uma das muitas vielas que cruzam os arredores onde o comércio funciona. Entre um córrego divido pela extremidade de uma e outra ruela, compartilhando espaço com ratos e dejetos das mais variadas espécies, os jovens vigilantes embalados ao som do estilo musical preferido, com as canções de rap, "viajam" e demarcam as histórias narradas em letras que retratam a realidade de ídolos do tráfico.

Os mesmos ouvidos afiados que apreciam a batida das músicas quase que autobiográficas são aqueles que atem-se a qualquer ruído estranho, diferente... de sirene. "É a polícia?!" Os olhos vivos dos vigilantes se esbugalham, assim que algo que fuja à normalidade é percebido.

Durante a vigília permanente, há aqueles que aderem à utilização dum banquinho convencional, embora haja quem opte por uma caixa de madeira utilizada para armazenar frutas e verduras para o descanso no decorrer de suas tarefas diárias, afinal de contas, repousar as pernas é indispensável quando, em muitos casos, delas se exige disposição para driblar, sob o breu das lâmpadas propositalmente danificadas pelos próprios vigilantes, os becos e vielas estreitas quando é necessário retirar-se em debandada para acionar que a polícia chegou na quebrada. Outros não se preocupam em manter-se em pé ao longo das horas correntes, pois o hábito há muito tornou-se rotineiro.

Não há gênero específico para tornar-se um vigilante. Ora ou outra é possível notar a presença de meninas desempenhando esse "serviço" - como vigilantes ou acompanhante do namorado, parente, amigo...

Àquelas em que a vaidade ficou apenas em revistas ou na televisão, as vigilantes do tráfico não se preocupam com modismos na hora em que de fato a "atividade" é realizada. Na cintura modelada, pochetes penduradas encontram-se abarrotadas de cápsulas e derivados de entorpecentes, além do dinheiro rendido por elas ao longo da labuta.

Pelo ar, seja dia ou noite, tampouco importa aos vigilantes, quando o vício fala mais alto nada cala e impede a "Boca de Fumo". A fumaça que se desmancha através da queima de cigarros e outras drogas ilícitas, demarcam o cenário de onde o "comércio" é realizado. Aquele que vigia é o mesmo que compra, e consequentemente o que também é usuário. São as drogas. É o tráfico.

Ali entre os estornos do esgoto à céu aberto os negócios são realizados. A compra e venda se estendem. Dinheiro. Baseados. Consumo de drogas. E claro, a vigília constante. Os "rendimentos" são efetivados. A partilha dos rendimentos, efetuada.

É madrugada afora que as drogas fortemente infestam o ambiente. É possível senti-la a metros de distância da "Boca", bem como dos pontos de permanente vigília. Na escuridão das ruelas, a única claridade que se observa é dos cigarros acessos, após o direcionamento de isqueiros e fósforos aos baseados habilidosamente equilibrados entre os dedos.

Diálogos, permeados por expressões do vocabulário próprio dos vigilantes, é, em muitas vezes, notado por agressões orais, quando, decerto, brigas e xingamentos mais concretos são regados pelo consumo ativo de álcool, e assim a treta acontece. "Se liga, maluco!"

Eles são jovens. Meninos e meninas, de 14, 15, 16 anos... Trocaram a escola que deveriam estar propriamente, pelo tráfico. Iniciaram prematuramente uma nova profissão: a de Vigilantes do tráfico.

segunda-feira, 16 de agosto de 2010

Seguro de vida



A batideira no coração


A única coisa que eu sei é que o que não estava na garantia era o fone de ouvido do meu MP3. Lixo. Coisa barata. Porcaria mesmo. Depois que o original quebrou, e tive que comprar um “novo”, na 25 de março, deu nisso: tempo limitadíssimo de uso.

Mas não pude imaginar que seria tão restrito assim. Foram 2 horas e 20 minutos de utilização. De quando sai da barraca de tranqueiragem eletrônica do camelô e perambulei um bocado, apreçando outros produtos por ali, até meu assento no banco superior do ônibus articulado, o popular ônibus-sanfona, saindo da Rua Coronel Xavier de Toledo, no Anhangabaú, sentido Terminal Campo Limpo.

Falar alguns palavrões ou esforçar-se com um pouco mais de fé para que aqueles fiozinhos retornassem à funcionalidade, talvez seria assinar em demasiado o termo de pobreza, mas entre o derradeiro fio de esperança e incredulidade habitando o mesmo ínterim, larguei-o de lado, em definitivo, depois que notei a presença de ruídos femininos advindos por detrás de mim, já adentro do coletivo.

Era a voz de uma mulher. Tom sombrio naqueles murmúrios de tristeza e apreensão. Não pude enxergar-lhe a fisionomia, a não ser se inclinasse para trás o pescoço, porém decerto acordaria o senhor ao meu lado que ensaiava os primeiros roncos, embora a contorção do ônibus-sanfona e o sol da tarde paulistana que batia diretamente em sua cara.

- Ana, é você?! – deu início àquela que seria a primeira ligação da mulher. - Que bom que você atendeu! Estou a caminho de casa, mas não sei se vou chegar... – após a primeira expressão de dor figurada pelo "ai", uma breve pausa no diálogo. - Comecei a sentir umas coisas estranhas. Uma batideira forte no coração. Só quero que avise a Emanuel que guardo um envelope marrom, no lado esquerdo, no fundo do armário, por baixo de uma sacola cheia de linhas de tricô. Caso eu demore a chegar, diga-o sobre o envelope.

A mulher encerrou a chamada. Um silêncio momentâneo foi quebrado pelo segundo “Alô”, dois minutos depois.
- Juninho?! – não fora Juninho quem atendera de imediato o telefone. - Chame o Juninho, por favor, Patrícia. Careço falar com certa urgência com ele – um minuto foi o tempo em que a respiração ofegante da mulher deu lugar ao retorno do falatório, balbuciando seu segundo "ai". - Filho, talvez eu demore um pouco a chegar em casa, ou quem sabe até bastante tempo, mas caso isso aconteça, por favor, pegue um documento. Um envelope amarronzado, na terceira parte do armário, do lado esquerdo, embaixo de uma sacola com linhas de tricô – o filho provavelmente questionou as razões pelas quais a mãe tardaria a chegar em casa. - Não, filho, não sei se mamãe vai demorar, talvez sim, talvez não – justificou ela.

Agora, a terceira ligação seria para Maria, ao menos este foi o nome ao qual a mulher referiu-se , no início do telefonema. – Maria, é você?! Amiga, preciso te falar uma coisa... Tô sentindo um troço estranho. Uma batideira no coração. É uma dor no peito. Tô com medo de enfartar aqui dentro desse ônibus – e novamente a mulher comentou acerca do tal envelope, e exprimiu seu terceiro "ai". – Maria, liguei pro Juninho e pra Ana, para que eles pegassem o envelope que deixei no armário. Vai que não chego viva em casa. E como não contei anteriormente sobre isso, não quis me hesitar dessa vez, já que é a quinta batideira que tenho essa tarde, sem contar as muitas, durante as derradeiras semanas - Maria provavelmente indagara-lhe algo. – Sim. É o envelope ao qual comentei com você há algum tempo.

Nessa altura do campeonato, mediante a conversação daquela mulher em que mal sabia como era o rosto, quem estava prestes a sentir uma tal batideira seria eu. Aproxima-se meu ponto de desembarque, no ponto do corredor Faria Lima, em Pinheiros, encaminhando-me posteriormente ao meu segundo transporte coletivo para que enfim chegasse em casa.
E nada de ela falar, dizer, mencionar (ou qualquer outro adjetivo em referência ao verbo "revelar") anunciando o conteúdo daquele bendito envelope marrom embaixo das sacolas de tricô, no armário em sua casa.
Quando já perdera a esperança, da mesma forma que perdi quando o fone de ouvido que comprei na 25 não teve mais solução, a mulher murmurou baixinho, intrigada: Se eu morrer, quanto será que eles irão receber com o seguro de vida que fiz?! Poderia ter checado isso antes!

Levantei-me de meu assento, enquanto o senhor, companheiro de poltrona, despertara somente após o cutucão que lhe dei, em seguida ao meu pedido de "com licença".
Espichei o olhar, em busca da mulher que deixara guardado o “seguro de vida”, que ao sentir uma batideira no coração preocupara-se em deixar a família a par do documento. Belos olhos esverdeados um tanto que miúdos, longos cabelos lisos, de cor castanho-claro, uma jovem senhora de não mais do que 45 anos, bem apresentável com o vestido florido, justo ao corpo franzino, e por todo esse contexto, nem de longe ostentava algum indício de que a qualquer momento teria um piripaque.

Mas como diz o ditado: "quem vê cara não vê coração". E nesse caso, quem observava aquela mulher não imaginava que ela pudesse enfartar por ali mesmo.

Mais um drama, mais uma crônica vivida e vivenciada corriqueiramente nos ônibus-sanfona da vida, no qual os passageiros são os cantores que tocam e cantam suas próprias histórias.

segunda-feira, 19 de julho de 2010

Papo de Secretária


Após vinte minutos à espera de uma entrevista de emprego, sentado num cantinho, na recepção próximo a duas jovens secretárias, apontou-me a indagação:

Quantos assuntos diferentes são abordados por elas num dia inteiro de expediente?


Muito se ouve falar que o melhor lugar para se escutar boas histórias são nos bares. Concordo plenamente, por já ter vivenciado inúmeros causos botequins afora, e evidentemente presenciado situações que tornariam-se perfeitamente belas crônicas.

Como há algum tempo venho reportando relatos acerca de causos em meu ambiente corriqueiro e diário, os ônibus superlotados de São Paulo, o cenário desta crônica muito se difere da agitação e aglomeração de tantos indivíduos em seus trajetos rotineiros no transporte público.

Uma pequena recepção no terceiro andar de um prédio de número 350, situado numa rua do bairro de Higienópolis. Duas mesas defrontes uma à outra num espaço que não passava quatro metros quadrados. Duas jovens secretárias em seus respectivos computadores – e seus muitos causos -, compunham o ambiente das protagonistas desta história.

Foram três vãos de escadas, até avançar ao meu destino. Ao entrar na recepção, confirmei à secretária acerca do meu entrevistador. Ela, educadamente, solicitou que eu me sentasse, pois o “chefe” encontrava-se em horário de almoço. Uma única cadeira, na lateral da sala acha-se disponível. Encostei-me por ali, de modo que somente uma das secretárias conseguia me visualizar, ao contrário da outra.

Restava ainda meia hora para o ínicio da entrevista, que aconteceria às 14h. Um tempo bastante extenso para quem não tinha o que fazer na ociosidade do momento... A não ser atentar-me ao diálogo nada confidente entre as moças.

Enumerarei como Secretária Um, a jovem que estava na casa dos 22 anos de idade. Sotaque paulista. Longos cabelos castanhos escuros. Unhas coloridas com vermelho-sangue. Além do velho guerreiro allstar cobrindo os pés. Ela estava à minha esquerda, numa mesa com revistas sobre negócios, que dividiam espaço com outros papéis indecifráveis, além de um cachecol de cor rosa.

A Secretária Dois, defronte da amiga, e à minha direita, usava óculos de aro preto. Os cabelos cacheados eram o que mais chamava atenção na jovem que não ultrapassava os 24 anos de vida, sem dúvida, a detentora do título de tagarela, das duas.

Quietude foi o que esteve escassa naquela atmosfera repleta de conversação, desejos, fofocas e discussão do noticiário atual.

O que fazer nas férias? Ou no final de semana prolongado? Ele vai me ligar? Quem ganhou a partida de futebol? Essas foram algumas das tantas indagações abordadas, enquanto eu testemunhava o papo das secretárias, assinalando em meu bloco de notas, com a caneta de cor azul, que ainda me foi emprestada por uma delas.

Aonde ir nas férias?

Rio de Janeiro. Esse era o destino proposto pela Secretária Dois para que, ,juntas, desfrutassem no final do ano. Na Cidade Maravilhosa morava uma amiga nordestina dela. “Oxe, pode vir pra cá!”, insinuava a Secretária Dois, em referência ao sotaque carregado da colega, que certamente não havia sido contaminada pelo chiado carioca.

A Secretária Um considerou uma boa pedida, a programação sugerida. Porém caberá mais uma intrusa na casa alheia... Já que você vai levar o namorado?! - apontou ela, para a Secretária Dois.

Amnésia do aniversário do amigo "fofo"

O itinerário turístico foi interrompido pela súbita lembrança da Secretária Um acerca de acontecimento que havia ocorrido no início do mês. Memória fraca a da garota:

- Tenho um amigo. Fofo. Nunca esquece meu aniversário. Todo ano ele me liga e me manda mensagem me parabenizando. Esses dias, acordei, e logo lembrei que ele fazia aniversário. Falei pra mim mesma que depois mandaria uma mensagem no Orkut dele. Então fui escovar meu cabelo. Lembrei de enviar a mensagem, mas adiei. Daí minha mãe me chamou para sair com ela, para fazer nem sei o que. Lembrei novamente do menino, mas quando resolvi mandar a mensagem, meu irmão usava o computador. Ficou para quando eu chegasse. Umas 11 da noite retornei para casa... Quem disse que lembrei?! Quando deu meia-noite e meia... Fiquei doida. Olhei na página do Orkut para ver se estava o ícone do link dele, de aniversariantes... Mas não tinha nada. Quando abro minha página de recados, uma mensagem de quem?! Dele. Ele perguntava como eu estava, já que fazia uma semana que não nos falávamos. Nossa... Fiquei muito sem graça. Imediatamente peguei o celular e liguei pra ele. Só dava caixa-postal. Enviei um e-mail gigante, me justificando, dizendo que eu não havia esquecido e tal. Mas é incrível... Mas, na verdade, eu sempre esqueço! E ele, fofo, disse que ‘tudo bem’! E acredita que nesse mesmo dia um primo meu também fez aniversário?! Fui lembrar dias depois.

Msn, Skype & outras redes sociais

O desenrolar da conversação entre as meninas avançou. A Secretária Dois teclava com amigos pelo Skype e MSN, ao mesmo tempo em declamava aquelas mensagens “românticas", fabricadas no Power Point, com uma música de ninar de fundo.

Qual a notícia do dia?

O cenário ainda foi compartilhado com a leitura – e comentários simultâneos - das manchetes do noticiário nacional.
“Sabia que a partir de agora não pode mais dar palmadas nas crianças?!” – anunciou a Secretária Um.
A colega interveio, sarcasticamente:
“Eu li essa notícia... Atente-se à lei: não pode dar palmadas, mas deve ser permitido dar chineladas, cintadas... E é a Xuxa quem está fazendo a campanha, sabia?!”

De olho no placar: Corinthians X Ceará

“Não ouvi fogos, nem bagunça na rua. Depois que fui lembrar que o jogo do Corinthians com o Ceará deu zero a zero. Tá explicada a paz! – comentou a Secretária Dois.

Pensando nele ( e comentando também)

Está sentindo a ausência de um típico tema discutida entre o sexo feminino!? Bingo, se você pensou em: "coisas do coração"! Por um instante considerei que minha presença no recinto vetaria tal assunto. Ledo engano. E então, a Secretária Dois, deixou-me à par de seu atual estado amoroso.

- Às vezes dá vontade de jogar o celular na parede para perder o vício de falar ao telefone. Mas você acha que aguento ficar sem?! Bem que ultimamente as pessoas estão mandando mais torpedos no celular do que propriamente fazendo ligações. E como faria isso também, se não consigo ficar sem conversar com o Kaike?! Menina, estava pensando nele um dia desses. Pensando tanto, tanto... Que na hora de tanto pensamento positivo quem me manda uma mensagem?! O próprio! A partir de agora vou ficar pensando positivo sempre!

- -

E enfim, às 13h50, meu entrevistador chegou na recepção. Se bem ou se por mal não pude mais acompanhar a prosa das secretárias.

Em suma, fica a indagação:

Será que alguém consegue imaginar quantos mais outros assuntos foram abordados ao longo do restante do expediente delas?!

sexta-feira, 16 de julho de 2010

Ingrata Homenagem II - a Xerocópia



- Xérox! Xérox!

- Por que tanto falam ‘xérox’
se estou em um restaurante?"

- É claro que essa menina
não está dizendo isso pra mim!”




O roteiro turístico corria na perfeita normalidade para Robson, um paulistano que visitara pela primeira vez a cidade de Recife. Deslumbrar as belas paisagens, com praias exuberantes , além de saborear a típica gastronomia do local, estava previamente programado por ele, assim desembarcasse em terras pernambucanas. Entretanto, a casualidade fizera questão de marcar as férias do rapaz, não somente pela bonita cidade, mas também pela história de uma menina com o nome, no mínimo, inusitado.

O restaurante de Boa Viagem, na verdade uma lanchonete mais requintada, seria mais um lugar comum, como tantos outros espalhados por toda parte, mas se tornara um dos locais mais inesquecíveis para Robson, naquela tarde de 15 de agosto de 2000, em que o Sol reinava no céu de cor anil.

Corpo nitidamente desenvolvido. Apenas 13 anos de idade. Bem apresentável. Trajada com um singelo jaleco branco. Unhas alvas. Madeixas cacheadas disfarçadamente amarradas para trás com a utilização de um gel capilar. Assim estava ela. A garota, uma das atendentes do restaurante, e singularmente detentora do nome, que Robson – e acredito que muita gente - jamais pensara que alguém pudesse ser batizado.

- Xérox! Xérox! – a palavra fora pronunciada várias vezes por pessoas que dirigiam-se à jovem.
Por que tanto chamam o nome ‘xérox’ neste restaurante? Importunou-se Robson. Queriam obter a fotocópia de algum documento? – pensou ele.

Porém, retornaram a indicar à palavra “Xérox” à jovem. Tal indagação “consumiu” Robson, que estranhara o atendimento, sem nenhum tipo de referência da garota a uma possível máquina ou local propício para a cópia de documentos ou algo similar.

Curioso e aquieto, Robson não resistiu, e quis sanar sua interrogação.
- Vem cá... – conduzindo- se à jovem - Estão chamando você de Xérox ou estou enganado?!
Sem qualquer tipo de constrangimento ou incomôdo, ela afirmou que sim. Melhor dizendo. Que era seu apelido.

- Meu nome é Xerocópia. Mas sou conhecida como Xérox, aqui pelo pessoal. - afirmou ela.
- Você está falando sério? Seu nome é Xerocópia mesmo?! – Robson ainda não conseguira crer no que acabara de ouvir. Segurara o riso. Prendera a respiração. “É claro que essa menina não está dizendo isso pra mim!” – imaginou ele.
- Sim. Isso mesmo! – garantiu com concisão a jovem.

De forma bastante incisiva, Xerocópia revelou que para ela aquele nome era muito significativo, embora muitas pessoas o considerassem motivo de chacota. O que seria um fardo carregado a vida inteira, de certo, uma ingrata homenagem para uma grande parcela. Para ela, não!

Este nome simbolizava o desejo do pai da garota em possuir, de alguma forma, o que tanto admirava: uma máquina xerocopiadora. Não necessariamente de maneira material, já que as condições financeiras expressam a impossibilidade da aquisição do equipamento, mas sim, eternizar de uma outra forma, homenageando a filha primogênita.

Xerocópia revelou com orgulho, a Robson, o turista que acabara de conhecer, que com toda a garra e luta,o pai conseguiu, aos poucos, melhorar as condições de vida da família, aproximando do objetivo em montar um pequeno bazar, e claro, adquirar com a prosperidade do negócio, uma máquina copiadora. O pai da jovem pernambucana viera a falecer. A mãe tomara conta das atividades comerciais, que tomou novo rumo, com a abertura do restaurante.

Para Robson, o relato de Xerocópia serviu como experiência ao demonstrar o significado de certas coisas, que são as atitudes das pessoas, as decisões que elas tomam no decorrer da vida, o valor mais importante imbutido no ser humano.

Seria simplesmente cômico gargalhar do registro de batismo de alguém que fora batizado com o nome de uma máquina. Mas poucos minutos foram suficientes para prestar atenção e valorizar a história da família.

- Um homem simples daquele, com uma percepção humilde... Tamanha, que nunca desistiu de um sonho, mesmo que de forma “bizarra”, conseguiu o que sonhara. – contou Robson.
Robson nunca mais voltara a Recife e também jamais esquecera de Xerocópia. Marcada pela forma cômica, entretanto, como aprendizado, ele narrou a história da garota, com a certeza de que existe a necessidade em dar sempre a oportunidade de ouvir as versões dos fatos, dos signficados, pois muito mais fácil do que gargalhar de algo aparentemente bizarro, é compreender o que há por trás de cada história, de tantos nomes diferentes batizados por aí.

quinta-feira, 8 de julho de 2010

Ingrata homenagem

Acha que seu nome é feio?
Que você é o único a ser gozado por carregar o peso de ter um nome que, digamos, fuja do comum?
Atente-se então à leitura desse texto...


Ainda é natural, homenagear aos pais e avós ao colocar os mesmos nomes nos filhos. É um “Junior’ pra cá”, “Filho” pra lá, “Neto” noutro acolá. Mas há quem carregue a vida inteira a ingrata homenagem de possuir a mesma (e horrível) alcunha.


José Cirilo Fernandes é o nome do meu avô, que por causa da pele clara, fora chamado a vida toda de Zé Branco. Seria um dos tantos Josés espalhados Brasil afora se não fosse sua peculiaridade, personalidade e tantas histórias vividas e narradas. Um paraibano que apenas nascera no Estado, pois desde os 18 anos desembarcou no sul da Bahia, de onde nunca mais saíra.

Jamais voltara a cidade de origem. Contava suas histórias com a lembrança fraterna dos parentes que jamais reencontrou. Casou. Teve 10 filhos. Todos os herdeiros batizados, e de certa forma, “homenageados”, ingratamente, na minha ótica, com nomes marcantes na vida do meu avô.

Erocilma (Tia Cilma, para mim) foi a primeira a receber o nome cuja referência à irmã do meu avô. Osmilda (minha mãe) e Salete eram outras irmãs dele. Anos adiante, vieram mais três filhos, agora todos homens. Os homens do ‘H’: Agapito, Agamenon
e Agaílson, esses, em memória dos irmãos de José Cirilo.

Agapito (Ti Pito, aos sobrinhos), assim que apontou em São Paulo, “trocou” seu nome para Fernando. Agamenom é conhecido como Menon (aos sobrinhos, carinhosamente chamado de Nonon). Agailson, que por si só já parece ser único, ainda é conhecido com um apelido também nada familiar, Itinha.

Sueli e Suélia tiveram nomes mais convencionais. Embora não se perdesse a chance de rimar ou referir a alguma coisa. “Sueli é bacana... Então a próxima será Suélia para combinar!” A adotiva da família de Zé Branco é Nazarete. O caçula, Benevenuto (isso mesmo, não redigido de maneira errada: B.E.N.E.V.E.N.U.T.O) é certamente o melhor de todos (não dizendo pior).

Ele contava que quando foi estudar o ginásio, como era mencionado na época quando se ingressava a partir da 5ª até a 8ª série, o evento do início do período escolar foi saber quem era o tal Benev... nuto... “Como se fala mesmo?! Ele comentava (até ria), que as pessoas paravam em frente a sala procurando e pergunta
ndo quem era o tal do cara de nome “bizarro”. Aliás, feio mesmo. Naquela época duvido que alguém diria a palavra ‘bizarro’.

Minha tia Erocilma pareceu seguir inspiração do meu avô. A primogênita dos filhos se chama Edilomar. Não errei no artigo definido. O segundo filho também teve o sufixo “mar”, Elizomar. O terceto, claro, não poderia perder a rima, daí veio Elismar (e ai de quem chamá-lo assim. Seu nome agora é Ricardo).

E o batizado com nomes combinatórios não parou por aí... A onda do momento seria o sufixo “ilo”. Nasceu Cirilo (homenagem ao meu avô). Em seguida, Murilo e o mais novo membro da família, Camilo.
Falando de mim... Com o meu nascimento, foi cogitada a possibilidade de me batizar com o nome do meu pai. Ainda bem que um primo interveio e sugeriu Vagner. Ufa... Que me perdoem aqueles que se chamam Valmir, mas convenhamos que Vagner é mais bonitinho né?! Já minha irmã... Sabe-se se lá onde minha mãe foi encontrar esse nome, foi “presenteada” com o Wadila (se lê, uádila).

OBS: todos os nomes aqui abordados são de parentes maternos. Imagina referir acerca dos paternos?! Mas fica para a próxima crônica.

Da esquerda para a direita, meus primos
Camilo, Murilo e Cirilo



quarta-feira, 9 de junho de 2010

Alô, Vera?


Uma parada para um amor bandido

De certo não sabia o nome daquela mulher que usava brincos argolados, calça jeans com azul desbotado, com uma espécie de longo cadarço costurando suas pernas curtas.

Ela sentou-se ao meu lado, ao adentrar o ônibus no ponto Parada Paulista, na linha Butantã - Circular – Praça Ramos.

- Licença... - apontou ela, dirigindo a sacola mediada de papel sobre o colo.

Com um semblante notoriamente conturbado, ela fixou o olhar perdido entre o vácuo do veículo excepcionalmente não lotado, embora já ultrapassassem às 18h, de uma quarta-feira, em São Paulo.

A jovem senhora, de pele morena não assemelhava mais que 33 anos de idade.Como se estivesse no meu próprio bolso, senti a vibração do celular da mulher por dentro de seu casaco. Ela o retirou da jaqueta de cor preta que usava. Com um nada discreto relógio digital em destaque no visor, ela encaminhou-o ao ouvido.
- Vera?! – indagou a mulher, esperando à confirmação.

- Vera?! - insistiu ela.
O retorno enfim foi estabelecido.
- Vera, Valter me deixou sozinha! Não dá Vera, quando eu chegar em casa vou jogar as coisas dele para fora de casa, Vera. Preciso tocar minha vida! – pausou, a mulher após o desabafo.
Foi impossível não ouvir o relato da mulher que estava ao meu lado conversando com uma tal de Vera. E mesmo que não me encontrasse ali tão próximo, ouviria seu discurso se estivesse aos fundos do ônibus. A agonia, raiva e indignação refletiam o tom alto de sua voz grave.
- Vou tirar a aliança quando eu chegar em casa. Minha natureza não tá pedindo, Vera, pra ficar mais com Valter! – insistiu ela.

O protagonista da história de amor da mulher, Valter, queria permanecer no bairro de Ermelino Matarazzo, zona leste de São Paulo. Enquanto ela preferia permanecer em Pirajussara, na região do Taboão da Serra. Dois lugares extremamente distintos para ela, que considerava o local onde morava " o paraíso", se comparado aonde Valter queria viver.

- Lá é o céu, Vera! Mas viver em favela... Só Deus! Sei que até os ricos estão morando na favela, mas onde eu morava é na avenida, Vera. Avisaram para Valter “se quer o seu marido vivo, não traga pra cá”. – continuou o diálogo afirmando que Valter só vivia nos botecos.

A mulher dizia que Valter era um homem brincalhão. Que gostava de chamar com apelidos carinhosos todo mundo. Era amor pra cá, querida pra lá. O que a preocupava, uma vez que nem todas as pessoas saberiam interpretar esses cumprimentos intimistas.

- Valter está correndo da justiça. – prosseguiu ela.
O relacionamento da mulher com Valter perdurava há pouco tempo. No entanto, ele acabara de sair de um casamento no qual teve um filho, de 2 anos de idade. Porém Valter não estava sua obrigação de pai, ou seja, a ex-mulher estava o processando pelo não pagamento da pensão alimentícia.
- Caço um lugar aqui para a mulher dele não saber, mas a polícia vai pegar ele de qualquer jeito, Vera!
Embora já tivesse sido intimado a prestar esclarecimentos à polícia, Valter não havia aparecido à delegacia. E ao que tudo indicava... Ele estava fugindo.

- Pensão, irmão paga. – afirmou a mulher, continuando a história. – Mas em seis dias, a polícia vai atrás dele, Vera. Graças a Deus não tenho filho com ele! Pois o homem tá se jogando, Vera.
Passaram-se quinze minutos desde o momento em que a mulher sentou-se ao meu lado, até anteceder o ponto em que eu desceria. E em todos aqueles minutos de prosa ao telefone, não havia identificado – suspeitado apenas – o sotaque nordestino daquela mulher. Pernambuco? Paraibano?
- Se ele for para a Bahia, a polícia pega ele! – carimbou a localidade do casal em crise.
Tum, tum, tum, tum...Os créditos do celular de Vera acabaram.

Meu ponto de descida apontara. Guardei meu caderno de anotações após escrever a história da mulher que não notara que eu estava escrevendo sobre sua vida naquele instante. Parti ao meu destino, sem ao menos saber o nome daquela mulher. Se voltara às boas com Valter. Se realmente jogara as roupas do homem na rua. Se retirara a aliança prateada no dedo anelar. Se a polícia prendeu Valter pelo não pagamento da pensão ao filho.

segunda-feira, 31 de maio de 2010

Que Deus te abençoe, meu filho!

Você pede a bênção aos seus pais antes de dormir ou ao acordar? Bizarrice ou respeito?


Ao longo de minhas duas décadas de vida, o pedido de bênção foi, não obrigatório, mas costumeiro, religioso. Até hoje, mantenho vivo esse costume, que reflete muito mais que uma obrigação cristã, mas uma característica enraizada culturalmente através da família e do meio social onde fui criado.

Evidentemente, no decorrer anos, o hábito vem se tornando impraticável. Desde que desembarquei em São Paulo, raras foram as vezes em que presenciei essa tradição. Bizarro para muitos - especialmente à garotada "moderna". Mico para tantos outros. E um costume imprescindível e praticado por muita gente ainda. Muito escutei por aí: “Dar 'bença'? Acha que vou pagar esse mico?”

Acompanhando a rádio Record AM em uma dessas manhãs, notei que a tradição ,em pauta neste texto, é mantida porPaulo Barboza Filho, repórter da rádio, ao solicitar o “Bença, pai!” ao âncora, Paulo Barboza, que de praxe, dirige o “Que Deus te abençoe, meu filho!”.

A bênção, que segundo os livros bíblicos, é "a mão de Deus sobre nós", o seu pedido, seja aos mais velhos, aos pais, ao vizinho, ao amigo, ao parente (até mesmo a alguém que você nem se lembra, mas que te carregou no colo há vinte anos) era até pouco tempo uma tradição viva do povo brasileiro.

Impossível esquecer o "Que Deus te abençoe, meu filho!" – que retrucava dona Delita, aos 63 anos de idade, todas as noites quando adentrava à sala de aula, em minha época como professor de jovens e adultos, na Escola Municipal Rui Barbosa, na Bahia. Enquanto isso, seu Joaquim, no alto de seus 65 anos respondia de maneira distinta à colega o “Que Deus te dê boa sorte!”

Em meu regresso à pequena cidade natal, ao me deparar com os indivíduos aos quais desde moleque estendia a mão solicitando a bênção, meus avós, e tantas donas Marias e seus Josés, a prática sadia do pedido solidificava a tradição, ainda mantida em lugares como as quais vivi, evidentemente de forma minimizada, se compararmos há décadas. Entretanto, pouco se percebe esse hábito nas cidades grandes.

Mas antes que você se pergunte “pra que diabos pedir a bênção?”- esta ,que é uma indagação comum dos meus primos e amigos da "nova geração", dos que consideram bizarrice ou mico tal ato. Todavia os mais velhos tinham sempre na ponta da língua, a resposta aos jovenzinhos ou até mesmo os adultos que não praticam tal costume: “Meu filho, a bênção é importante não para quem dá, mas para quem recebe.”


Confesso que desde que cheguei a São Paulo, basicamente não pratiquei esse hábito, oque demarca o retrato da perda desse costume, não exclusivamente de minha parte, mas de uma sociedade que não se enxerga mais inserida a esses costumes. Não me recordo quando pedi a bênção pela derradeira vez. Aliás, lembro-me sim... à dona Maria, que chegara recentemente da Bahia (até beijinho na mão dela eu dei).



Mas quando pedir a bênção?
- ao entrar na casa
- antes de sair
- pela manhã (ao acordar)
- pela noite (quando dormir)

E caso você não peça?
- pode esperar que será visto como o mal educado
- ou que você não respeita aos meus velhos.

quinta-feira, 8 de abril de 2010

Lição de casa

Escola Municipal Rui Barbosa


Filho, irmão, amigo... e agora, um jovem professor.
Uma mútua lição de aprendizado.


Chegava às 18h30. Após alguns passos, o professor se encontrava em sala de aula. A casa onde onde ele morava ficava do lado da Escola Municipal Rui Barbosa, no povoado de Cavada II, no sudoeste da Bahia. Ali, no interior da sala multisseriada, aguardava a chegada de seus não mais de vinte alunos.

Seu Joaquim era um dos alunos mais pontuais. No topo de seus 63 anos, ganhava o título de estudante assíduo. Não faltava um dia sequer, e quando isso acontecia, decerto, na aula seguinte, a primeira coisa que  faria era justificar sua ausência. Com a bolsa transversalmente transportada entre os ombros, além do inseparável chapéu cobrindo os poucos cabelos, ele adentrava a sala de aula. Sentava-se, religiosamente, na primeira fileira, ao lado esquerdo, onde ficavam os alunos de nível de alfabetização.

- Boa noite!  - o anfitrião anunciava sua entrada.

- Boa noite! Bença, Seu Joaquim! - cumprimentava o professor ao seu aluno.

A turma de alunos chegava à medida que as sete horas da noite apontavam. Dona Adelita era aluna aplicada. O lenço fino na cabeça era obrigatoriedade para ela que, como tantas mulheres da região, cobriam o cabelo grisalho com o tecido. Os óculos pendurados no pescoço eram necessidade. Sem os acessórios seria difícil enxergar as letras, que por si só ainda eram obscuras para ela. Os anos consumiram a visão aguçada nos tempos de menina e a oportunidade de ir à escola. Ela sequer havia se matriculado em uma escola, e estava ali enfrentando o desafio de familiarizasse com as palavras, essas que até então eram códigos indecifráveis para ela.

E aos poucos, ela conseguiu juntar as letras e formar duas importantes coisas em sua vida: o nome completo - Adelita Pereira da Silva - e a convicção de que o tempo não levou sua autoconfiança.

O professor em questão, um jovem garoto, beirava os 17 anos de idade. Um baiano magricelo, de estatura mediana, um tanto tímido, de olhos clínicos, cabelos castanhos e de cor parda.

O debruçar-se sobre um caderno, a leveza dum lápis no cruzamento com as linhas da folha de papel - embora o desconforto os dedos calejados do peso da enxada marcada por tantos anos. Parecia não haver maior lição de casa do que essa. Foi mais do do que o desenho duma assinatura sobre um ponto demarcado, mas a certeza de que seus alunos nunca mais sujariam o dedo polegar com a tinta de carimbo por não saber escrever o nome.

Essa era a lição mútua de aprendizado do jovem professor para com seus alunos. Mais do que alfabetizar jovens e adultos, que nada ou pouco sabiam do poder das palavras ou do encanto da leitura, foi, sobretudo, tornar-se rico de conhecimento por lidar com pessoas com experiências fantásticas de vida.

domingo, 4 de abril de 2010

Um reencontro de olhares


"Nenhuma palavra.
Somente os olhares de dois amigos
Uma década depois"

2 de abril de 2010. 14h45.







Já atrasado para o martírio em trabalhar em plena sexta-feira santa, peguei o primeiro ônibus em direção à emissora onde era estagiário. Pensar nas tradições vividas no tempo de infância foi o que esteve mais presente em meus pensamentos nesse dia, em que curtos flashes me remetiam aos banquetes e fartura de peixe à mesa para celebrar a data sagrada. Mas pausemos por aí essas lembranças.

Já devidamente acomodado em um dos assentos individuais, próximo a catraca do ônibus, atento-me a um rapaz que entrega o dinheiro da condução à cobradora para a liberação da catraca.A familiaridade do rosto fez-me fixar o olhar àquele rapaz. Uma evidente pinta escura estampada do lado direito da face, o cabelo castanho aparado baixo, e aquela irreconhecível feição tímida... Seria ele: o menino com quem estudei na 3ª série C, há 11 anos?

- Moço, seu troco! - a cobradora chamou-o, direcionando o dinheiro que ele havia esquecido. André, que não notara minha presença por ali, virou-se, balançou a cabeça como se quisesse dizer “como sou cabeção”, pegou a moeda e dirigiu-se ao fundo do veículo. Ainda mantive o olhar nele, para de fato, certificar-me que era aquele menino que torcia pro São Paulo e gostava de pintar as linhas das folhas do caderno cada uma de uma cor. Era ele sim.

“Mas ir atrás dele e dizer ‘Oi, lembra-se de mim... Sou o Vagner! ’” Fiquei sem jeito, ao mesmo tempo em que tentava criar coragem para ir lá e certificar que ele era realmente o meu colega de classe. “Aquele garoto com quem estudei a 3ª e 4ª séries do ensino fundamental na EEPG Professor Homero dos Santos Forte”.

Fazíamos o mesmo percurso diariamente de volta para casa. E normalmente sentávamos juntos na sala de aula.E desde o final do ensino primário, em 1999, nunca mais havíamos nos visto.Já se passava das 15h, quando levantei-me, direcionando meu dedo indicador para acionar o botão de alerta à parada. Olhei pro fundo, e lá estava o André, na derradeira poltrona. Encarei-o... Esperando um retorno dele.

Ele me olhou. Meio assustado, me cumprimentou, de forma que seu rosto estivesse desenhado “será que é ele mesmo?” E era eu. Desci. Emocionado de tê-lo revisto. E decepcionado por termos nos reencontrado apenas por olhares, não mais do que 30 segundos. Assim que o ônibus seguiu, pude vê-lo esforçar-se a olhar para trás, através do vidro embaçado do veículo e, certamente, confirmar se realmente era eu, aquele menino que já havia dado lugar ao físico de um homem, uma década depois.

domingo, 21 de março de 2010

Por onde anda Dudu?














Dudu é ainda um menino, percorrendo em rumos novos, histórias antigas de sua vida.
Um pequeno mineiro perdido na imensidão de São Paulo, à procura do avô que nunca conhecera, e num dia de Carnaval, alimentando o breve desejo de não passar em branco uma noite e realidades já tão muitas escuras para ele.

Carlos Eduardo Ignácio da Silva é o nome de batismo desse menino 22 anos de idade.
De carona em carona, Dudu deixou "Três Corações", cidadela ao sul de Minas Gerais. Com a mente cheia de sonhos, porém, de mãos vazias, o menino desembarcou em Campinas, no início de seu percurso, até chegar à cidade de São Paulo.
O jeito de falar, logo revelou, através do sotaque doce e do olhar ingênuo, a origem do garoto de pele escura e olhos vivos.

Era véspera de quarta-feira de cinzas... E, casualmente (ou não) cruzei o caminho daquele garoto naquela noite em que eu voltava de uma semana agitada de Carnaval. Eu havia saboreado a curtição da água doce de uma represa no extremo-leste e o sal do mar da Praia Grande.Dentre os mais de 20 assentos disponíveis no micro-ônibus, dirigi ao fundo, e na derradeira poltrona do lado esquerdo, acomodei-me com minha minúscula mochila azul-marinho abarrotada com um livro emprestado de um amigo escritor, além de algumas peças de roupa.
Dudu entrou, e da mesma maneira que fiz, encaminhou-se ao final do veículo. Sentou-se na ponta oposta a qual eu estava. Trajado com um tênis velho no pé, uma camisa surrada e uma bermuda florida bastante fina com um pequeno papel avulso nas mãos, ele sentou-se.

Imediatamente, e de maneira inquieta, ele agitou-se a remexer o bolso da bermuda. Levantou-se e continuou a procurar. Olhou para baixo, para os lados, embaixo da poltrona.
- Acho que perdi 10 reais! Em tom alto, resmungou após a contínua busca.
Mirei-me para ele num curto olhar, praticamente ignorando o fato:
- Puxa, que chato!
Naquele momento senti que ele se contentara com minha breve lástima. Porém notei que ele ainda procurava alternativas para estender minha atenção.
- Esse ônibus vai pra metrô Carrão?
- Sim. Respondi sinteticamente.
- Sabe me dizer como faço pra chegar a esse endereço? – abriu o papel que carregava consigo, dirigindo-o em minha direção. Estava escrito no pedaço rasgado de um caderno, com letra miúda, o itinerário detalhado para se chegar ao Sambódromo do Anhembi.
Enquanto eu visualizava o percurso o qual fazia-se necessário pegar o ônibus e passar por duas estações de metrô, registrei Dudu, na contagem de suas moedas e cédulas de dois reais.

Devolvi seu "mapa" e em seguida perguntou se ele tinha certeza de não ter perdido mais dinheiro.
- Não. Só tinha aquele mesmo.
Restara uma miúda quantia. Algumas moedas e uma nota de dois reais.
Preocupado, ele indagou qual era o valor da passagem de ônibus, temendo que o dinheiro não fosse o suficiente para chegar ao seu destino.
- R$ 2,65, o bilhete do metrô e R$ 2,70 o de ônibus.
Abri minha mochila, apanhando minha carteira ao fundo. Retirei dez reais, ainda dos vinte que me restava.
Aproximei-me do banco e levei o dinheiro em direção ao garoto.
- Toma!
- Não precisa. Obrigado. Retrucou, Dudu.
Ainda insisti que ele aceitasse:
- Aceita. Pelo que parece o dinheiro estava contado, não é?
- Sim, estava. Mas não quero te incomodar.
- Se eu tenho vinte e você não tem nada. Não vou morrer por causa disso. Além do mais pelo que parece, você não tem mais nada. Certo?!

O garoto abriu o sorriso, exibindo os dentes ávidos. Novamente agradeceu-me. Recebeu o dinheiro de minhas mãos. Olhou para a cédula e em seguida me devolveu.
- Obrigadão aí, viu, mas prefiro que, assim que chegar no terminal, você compre e me dê o bilhete! Acho mais justo.
Realmente a atitude de Dudu me admirara. E claro, valeria a pena dedicar minha atenção a essa daquele menino.
Dudu estava a caminho do desfile das escolas campeãs de São Paulo. Ele queria sentir que o Carnaval não passara despercebido para ele, diferentemente das pessoas que cruzavam por ele sem notá-lo.
Naquela noite, minha pele clara ardia do Sol intenso da praia usufruída no fim de semana, enquanto Dudu fantasiava a desejo latente de não passar em branco o Carnaval, numa noite e realidades, assim como ele, muitas vezes, já tão amargamente pretas.

Ele estava sozinho em São Paulo, levado pelo impulsivo de alguma forma divertir-se no derradeiro dia de Carnaval, orientado por rabiscos num pedaço de papel e pela bondade de quem se dispusesse a ajudá-lo.
A descoberta da existência do avô materno que morava em São Paulo provocou o interesse de Dudu em encontrá-lo, embora não tivesse sequer endereço ou telefone. Somente uma única referência: o nome do bairro, Capão Redondo.
Só que Dudu parecia não saber que diferente da pequena cidade onde vivia, São Paulo como toda a sua infinitude poderia ser um árduo labirinto ao garoto que não tinha casa, amigos, ninguém.

E ali, sentados no último banco daquele ônibus, poucos minutos passados das 21 horas, ele tinha a mim, que se aproximara dele para ouvi-lo narrar sua vida.
Chegamos ao Metrô Carrão. Partimos em direção a guichê onde comprei os bilhetes.
- Toma, fica com o troco! Levei as moedas e duas notas à sua mão escura.
Atravessamos a catraca, descendo as escadas rolantes. Adentramos o vagão e continuamos a conversa. Dudu me contara das namoradas, dos carnavais em Minas Gerais e também um pouco de sua família. Até que desci na estação República onde teria de pegar dois ônibus até chegar em casa, enquanto Dudu seguira seu percurso, agora, sozinho.

Aconselhei-o a pedir informações assim que desembarcasse na estação Barra Funda.Um aperto de mãos selou o término daquela noite de Carnaval em que o conheci. Como Dudu me mostrara o cartão do Centro de Acolhida onde ele estava morando, memorizei vagamente o endereço do local. Dias depois, relembrando do caso, pesquisei na internet sobre o albergue. Era o único na região. Encaminhei um e-mail, dando as referências de Dudu. Após aquela noite, estive intrigado em saber o paradeiro do garoto. Gostaria de encontrar com Dudu para saber como foi aquela noite de Carnaval, se conseguira chegar ao Sambódromo.

Decidi de alguma maneira, mesmo que minimamente ajudá-lo, quem sabe auxiliá-lo a encontrar seu avô, entrar em contato com sua família em Minas Gerais talvez.
No entanto, a resposta ao e-mail enviado ao albergue confirmara que Dudu não estava mais lá.
"Bom dia, o convivente mencionado não se encontra mais nesse Centro de Acolhida. Atenciosamente".

Hoje completa mais de um mês que cruzei por cerca de meia-hora aquele menino negro, de olhos vivos, de sonhos sonhados quase que ingenuamente.
Não sei se ele tivera o prazer de chegar ao Sambódromo.
Não sei se conseguira divertir-se naquela noite que procurava um sentido para manter-se ainda acreditando em seus objetivos.
Não sei se Dudu conseguira encontrar seu avô. Se alcançara o abraço do homem que o dera ímpeto - mesmo que indiretamente - para estar aventurando-se em São Paulo.
Consequentemente, não sei por onde anda Dudu.