Dez segundos.
Até meu olhar desordenado identificar, antes do beijo do lado direito do rosto,
sua fisionomia. Primeiro, um aceno com o braço direito em meu rumo. “Quem era
ela?”, pensei, ainda sem poder me afeiçoar em tempo hábil àqueles traços graciosos,
até meus lábios se encostarem ao canto esquerdo de sua face morena. “Tudo
bem?”, ela me perguntou com sorriso acanhado. Monossilabicamente, disparei um
“Tudo!”, meio embaraçado.
Ela então se
antecipou, sem me dar chance de ensaiar qualquer oração, à posteriori. “Este é
meu marido”, me apontou, em disparada, aquele com o qual agarrava a mão sem
aliança no dedo anelar. Imediatamente, fora a minha que apertou a sua forte e
ligeiramente. Em seguida, nossos olhos, efemeramente, se cruzaram; no mesmo
instante em que balançamos a cabeça como cumprimento típico de dois anônimos
que se veem pela primeira vez.
Embora estivéssemos
vestidos a mesma camisa, ou melhor, o mesmo abadá, em nada nos parecíamos. Ele
tinha os cabelos aparados pela máquina 1 e ultrapassava os 1,70 m de pele morena,
queimada de sol, há aproximadamente 30 anos.
Ela estava com
27. A camisa, costumizada, ganhara o formato de uma blusinha de alças azuis que
deixavam à mostra o colo do peito e a barriga enxuta. De pernas nuas, o
shortinho branco encobria pouco menos de dois palmos de suas coxas cor de
bronze, que sustentavam por uma sandália de salto alto a pequeneza de seus não
mais que 1,67 m. Ela estava linda!
Aproveitei as
luzes que piscavam ritmicamente de dentro do galpão, de onde também explodiam
funks e outras batidas eletrônicas, para me distanciar lentamente do casal de
namorados.
A festa
estava lotada. O que não impediu que
meus olhos e os daquela notável, até então estranha, se encontrassem novamente
naquela multidão. De longe, nos fitamos, enquanto, agarrada pela cintura, seus cabelos
-- como caracóis gigantes que tomavam todas as suas costas -- balançavam em
sincronia. Defronte a mim, enquanto aquelas mãos fortes e másculas de seu
marido seguravam-na, o meu olhar e o dela, análogo e nostalgicamente, seguiram a
mesma e única direção: um caminho trilhado oito anos atrás.
Flávia
Esbarramo-nos
por essas trajetórias incertas que o destino nos coloca à frente.
Sorrimo-nos,
quando meu sorriso triste se deparou com seu sorriso incandescente.
Uma
silhueta mágica desenhou a irresistível sensação do momento.
Nada
mais fiz a não ser reparar suas ações e gestos.
Imaginar
no pensamento, ao certo,
Como
deveria ser aquela linda jovem, cuja idade havia estipulado dezessete anos.
Que
na mente nunca pode vê-la chorando,
Apenas
esbanjando a vivacidade contida naqueles olhos de ternura.
Eu
sei, parece não ser verdade.
Talvez
pense ser loucura.
Acredite,
sinceramente é.
Menina
ou mulher.
Não
importa a forma como você chega em minha cabeça.
Mas
de uma coisa tenho certeza:
Parece
que o destino quer que eu não te esqueça jamais.
Seu
nome era Flávia. Apenas disso eu sabia,
Quando a conheci admirando as poesias que ela mesma fazia.
(Bahia,
14 de novembro de 2004)
Seu nome era Flávia, mas
eu não soube disso nos cinco minutos em que nosso flerte trouxe memórias naquela
festa que sinalizava o penúltimo dia do ano. Em um caderno universitário,
resgatado há alguns dias, ainda estão cultivadas as lembranças de um menino, de
então 16 anos, encantado por uma desconhecida, cujo nome apenas sabia.
Flávia se tornara inspiração
sem que eu soubesse, sequer, o tom de seu sotaque carregado. Dividíamos
o mesmo pátio do Colégio Dária Viana de Queiróz, em Barra do Choça. Ela, no 2º
ano do ensino médio. Eu, no primeiro.
Assim que, literalmente,
nos topamos um com o outro, apaixonamo-nos; primeiro, por nossos escritos. Em
seguida, nos tornamos amigos. E, por fim, descobrimos a sintonia de beijos
molhados, quando ensaiamos um namoro que (até hoje não sei por que) perdeu o
fulgor em apenas um trimestre.
Revezávamos nossas
visitas um à casa do outro. Ela entrecruzava seus braços em meu abdome à
procura de segurança todas as vezes em que eu, sob o comando de minha Titan 96,
nos rumamos da Barra do Choça, de onde ela morava, ao povoado Cavada 2, onde eu
vivia com minha família. “Seu cheiro natural é tão bom!”, reiterava em todos os
nossos itinerários cidadeXroça; assim que ela subia em cima da motocicleta, unindo seu corpo
ao meu, e, como uma espécie de ritual, apoiava o queixo à direita do meu ombro.
A adolescência de Flávia
se findou não quando terminara o ensino médio em 2006. Mas, no ano
seguinte, assim se tornara mãe. No entanto, a filha, gerada em São Paulo durante uma
viagem à cidade cinza -- hoje com cinco anos --, nunca chegara a conhecer o
pai, que interrompera sua vida em um acidente de moto.
Flávia se casou com um
conterrâneo. O matrimônio sem “papel assinado” é mantido há menos de um
semestre, na casa aos fundos da qual vivia com os pais e dois irmãos.
O ensino médio se
distancia ao mesmo tempo em que o ingresso no ensino superior parece cada vez
mais se afastar. A metade do salário mínimo que garante o sustento de sua herdeira
não vem da poesia, como bem sonhara em nossos tempos de flerte. As mãos de
Flávia se apartaram da caneta e do papel para movimentá-las, em círculos,
diariamente, enquanto mexe o caldeirão onde prepara a refeição cotidiana que
alimenta as crianças de uma creche local.
Não sei se Flávia continua
com o mesmo diálogo doce ou se sua filha tem a mesma tonalidade de sua pele e de
seus cabelos encaracolados. Nossa prosa se resumiu a um breve aceno, um
“Tudo bem?” e um olhar inundado de recordações.
“Oi. Você que é o
Vagner? Sou amiga de Flávia. Ela me pediu seu número!”, me abordou sua colega
de trabalho – a responsável por me atualizar sobre o dia a dia de Flávia.
Flávia não me ligou
dentre os poucos cinco dias que me restavam na Bahia, na primeira semana de
2013. No entanto, como pressentido há oito anos, e antecipado na crônica à
época “(...) Parece que o destino quer
que eu não te esqueça jamais”. A confirmação desta afirmação está não
apenas nesta frase, mas banhada em cada desses mais de 6 mil caracteres que costuram este texto em uma única lembraça.