terça-feira, 17 de janeiro de 2012

O oceano de Marli

Aquela menina de cabelos rebeldes e pele amorenada sonhava tornar-se professora. Jeito para o ofício não lhe falta. Dias prósperos de um futuro promissor pareciam levar Marli ao fardo do sucesso.  


Inteligência era palavra em abundância no vocabulário de sua vida. Aos 11 anos, atingia a quinta série - feito inalcançável pela maioria, que perdia o prumo dos estudos, ora pela reprovação, ora pela troca da sala de aula nos períodos em que a lavoura de café renderia um poupado ordenado no final da colheita. Tudo ali, na região do Capão Verde, povoado ao sudoeste da Bahia. 


Na sala de aula, qualquer conteúdo era dominado com facilidade pela baiana do sorriso farto de dentes brancos. Os trabalhos escolares eram impecáveis. A temida matemática parecia não ter vez com a gargalhada aguda de Marli. O ensino médio foi desbravado com facilidade por ela: a dona das notas mais altas da turma.

Mas o mar tornou-se rio, assim que Marli careceu largar os ainda intangíveis estudos superiores para, naquela ocasião, aprender o bê-a-bá do matrimônio e, em seguida, da maternidade. Aos 19, se casou; antes de completar uma vintena de anos deu à luz a sua primeira herdeira.

Os braços que carregariam os livros da tão sonhada licenciatura se trasladaram ao balanço de Iasmim e à incumbência dos ofícios domésticos. De estudante universitária, Marli converteu-se à dona-de-casa, depois, com a necessidade de um serviço remunerado, asseverou a sonhada sala de aula: mas não com o posto de educadora, e sim como faxineira, mais tarde, na função de merendeira.

Marli está afastada de seus sonhos, apaziguados pelas dificuldades de habitar em um lugar onde se respira muito mais que o ar puro, mas as amargas restrições.

E mesmo que transporte no nome o prefixo da palavra que analogicamente representa o infinito, o mar dessa baiana contraria-se aos seus dias que são todos iguais. Seu sorriso bravo não sentencia os dias mansos: enquanto faxina a casa, ela canta no ritmo da música alta que invade os cômodos. E o suor que escorre de seu corpo não afoga seu sonho, embora ainda em teoria, – porém felizmente – ela cultiva e, a seu modo, persegue as esperanças da menina que mais do que querer ensinar, está cotidianamente aprendendo a viver.

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Esta crônica faz parte da série "Cafés baianos", que conta histórias de pessoas e lugares dos povoados da cidade de Barra do Choça (BA) - cidade a qual vive durante muitos anos da minha vida.

2 comentários:

renato carvalho disse...

a escrita com certeza é envolvente e assustadora. no que condiz aos acasos da vida, e seus aspectos imprevisíveis.isso me faz refletir que não é necessário, ter capacidade e talento pra alcançar o que aspiramos. como futuro seja no ofício profisional ou no campo pessoal porque a vida quando resolve atacar ela é assim inxorável.inimiga nos reservando sempre o antagonismo.é claro que nós colaboramos muito para com esse cenário deixando as vezes que o ciclo do derrotismo se feche.

Robson Bezerra disse...

Parabéns pela linda crônica.