sexta-feira, 6 de janeiro de 2012

As dores crônicas de Maria

Ilustração Thiago Calle

Ela está mais magrinha desde a última vez; dos 59 quilos, somente 45 deles lhe suportam o peso do corpo revestido por uma pele morena escura já penalizada pelo sol de cada dia. Maria está em casa, no lugar que deveria chamar de lar doce lar, mas agora recebe o nome de prisão.

Nas paredes persiste a mesma coloração de sempre: o turvo da fumaça do carvão expulsa pelo fogão a lenha. Na saleta, os enfeites acomodam-se junto aos aparelhos de rádio ainda movidos a fita cassete, os televisores sem funcionamento e o portarretrato da formatura do ensino médio da filha. No chão do piso “queimado” de vermelho restam as derradeiras e poucas pegadas de quem passou pelo casebre com mais dois quartos pequeninos.

Maria segura os cabelos rebeldes e examina-os, contrariada; sente a ausência das tranças que dia antes compunha seu penteado. Em seu terno desejo, as madeixas seriam alisadas, espichadas por um secador. Contudo, em sua realidade cotidiana, é um mero elástico de borracha quem desmazela sua imaginação e aprisiona os cachos crespos.

Ela está sentada no sofá penitenciado pelo tempo – o mesmo tempo que também a castigara. Nos olhos afundados no rosto fino, ela esconde os dias em que as risadas saiam mansas e pulavam gratuitamente de sua garganta. Ela ajeita nos ombros a blusa verde de alcinha que já suporta não o peso de seu tronco, mas de seu constante pesar.

Maria admite não estar bem, embora – e infelizmente – transpareça claramente em seu semblante. Toda vida reclamara das dores: as enfermidades físicas têm acompanhado seu destino há um bocado de anos; ora o bico de papagaio, quando não as dores de cabeça e nas pernas.

A dois anos para alcançar os 40 anos de idade, Maria cultiva as memórias desgastadas, enfraquecidas pelas preocupações e tristezas, suas principais companhias. O companheirismo do matrimônio perdera o vigor da época em que era uma ligação sem melancolias e estorvos.

Pertencer ao evangelho é outra sobrecarga para Maria. Afinal, como pode transportar consigo o pecado? E ele atinge seus pensamentos (já feridos) quando os desejos lhe tomam. A cerveja noutras ocasiões matara sua sede, hoje em dia lhe é velada. Assim como o álcool, não lhe são mais permitidas as calças compridas e a tintura na cara, mas a imposição do barulho das caixas de som durante a pregação na Assembleia de Deus, todas as terças e quartas-feiras.

Maria encontrou o caminho do médico onde recebera drogas para frear os pensamentos que lhe têm perturbado. O doutor garantiu trazer-lhe o sono, enquanto a bula expõe através das letras miúdas o uso oral do medicamento para o controle de possíveis ataques de epilepsia e depressão.

Solitária, ela queixa-se da ausência dos amigos em sua casa, ao mesmo tempo em que resigna o fato de não poder recebê-los no lar distante de seus sonhos, ali onde sua filha se envergonha de receber um namorado,  ali onde, definitivamente, tem sido sua grande prisão. 

Maria está com depressão. Sufocada dentro da própria casa, na noite de Natal o presente recebido fora o anúncio do marido em viagem à cidade donde passaria ao lado dos pais o nascimento de Jesus. Sem convites, deixara-a e também os filhos, e se debandara sem remorsos aparentes. Este, o mesmo marido, que alertara Maria: se a fraqueza da esposa alcançar o divórcio com a igreja a ela também lhe será abdicado o casamento.

**Esta crônica faz parte da série "Cafés baianos", que conta as histórias de pessoas e dos povoados da cidade de Barra do Choça (BA) - cidade em que nasci e vivi alguns dos anos mais felizes de minha vida.

4 comentários:

tracy disse...

seus textos me dão leveza! mesmo sendo triste, me dão leveza!

Thai Nascimento disse...

Consegui visualizar o rosto de vários conhecidos nesta tua personagem. -parabéns pela descrição detalhada, gostei muito da crônica.

Cachola Literária disse...

Olá.Essa é minha primeira visita ao blog.Vi seu link no Projeto Blokutando pelo Facebook e resolvi vir conhecê-lo.Adorei seu blog e já estou lhe seguindo.Seu blog é muito bem organizado e suas postagens muito bem elaboradas.Seus textos são magníficos!
Te convido a conhecer meu blog e segui-lo também.Aguardo sua visitinha!
Bjs!
Zilda Mara
@ZildaPeixoto
http://www.cacholaliteraria.blogspot.com

Denise Paiero disse...

Vagner querido, que lindo esse seu texto! Você tem um talento enorme para trabalhar com gente, com as dores humanas - físicas e psicológicas. Também consegue mostrar as pequenas felicidades e belezas cotidianas. Você tem uma lupa para ler a alma das pessoas e consegue ainda mostrá-las em palavras. Isso é lindo! Parabéns! É bom poder passar aqui e matar saudades dos textos semanais que você e a Bruna me traziam pra ler!