domingo, 20 de novembro de 2011

Animal sem estimação


Família gigantesca sempre deu nisso: números exorbitantes. Eis então a contabilidade: uma bisavó de 90 e tantos anos, uma centena de primos, duas dezenas de tios e tias, quatro irmãos... Não bastasse a procriação em demasia, também não poderia faltar no balaio as outras criações: os bichos.

Quem desembarcar lá no inóspito povoado Cavada II, há 40 km de Vitória da Conquista (BA), onde morei boa parte de minha infância, vai se deparar com uma infinidade de animais per casa. Isso mesmo. Desconheço uma casa que não tenha ao menos um cachorro. Os nomes dos cães são os mais comuns possíveis. É Rex, Baleia, Bingo, Bolinha, Pipoca... 

E os bichanos vão desde os mais dóceis - de estimação -, àqueles especialmente adestrados para a caça. Que diga meu tio José Carlos, vulgo Zé Babão. Acompanhado de seus quatro cachorros, ao menos duas vezes saía pro mato para caçar tatu, luís-cacheiro e qualquer outro animal que lhes serveria de comida. Na cangalha do caçador de primeira já vi de tudo quanto é bicho: tamanduá-bandeira, cachorro-do-mato, tatu-bola, até gambá. 

Na casa de Sinvaldo, marido de minha tia paterna, não faltam aves. Lá é uma cantoria danada, embora não seja nada prazeroso ver os pássaros privados de liberdade. 

Em dona Delita, irmã de minha vó Alice, a atração do recanto é o papagaio, que aprendera até a falar os nomes dos netos. Início deste ano, quando visitei sua casa, quem disse que o falso falador pronunciou algum substantivo. Nadinha. Mas ao menos ele se atracou no meu ombro, depois de mordiscar levemente meu dedo indicador enquanto acariciava seu cocuruto.

Enquanto isso, na minha casa passaram vários tipos de bichos. Os cachorros (Bingo, Pipoca e outro que, me perdoe, não me recordo o nome), gatos (Suzy e Suzana) e periquitos sem alcunha. Porém a criação da bicharada não parou por aí: vieram as galinhas e os porcos, quando não surgiram cobras e taturanas. Certa vez apanhei uma gigantesca que havia visto só em filmes. Coisas de quem mora na zona ruralíssima. 

E destilando toda a minha ironia nessa oração: como eu os adorava!!! Toda semana eu era incumbido da ingrata missão de comprar ração aos quatro porcos que residiam no chiqueiro especialmente arquitetado para eles. A lavagem recolhida dos restos do almoço e da janta também iam parar lá na “casa” deles. Dois sacos de farelo de milho eram suficientes para alimentar os suínos por uma quinzena. 

Além dos bichos, que não tinham estimação nenhuma, era a vez das aves. E quem dera fosse algum periquito escalando sua mão, correndo até a altura do ombro. Eram as galinhas, montes delas. Deixar a porta da cozinha aberta era a certeza de que elas invadiriam o recinto à procura do que comer. 

Muitas foram as vezes que elas derrubaram as panelas, quebraram copos, pratos, encheram de cocô o piso. Nessa época, nunca fora usado tanto o verbo tanger. “Vai lá tanger as galinhas, menino!”, bradava minha mãe. E quando era a hora de alimentá-las! Numa vasilha feita por meio da lata de óleo de soja vazia ia eu, quando não um dos meus quatro irmãos, distribuir milhos às aves detestáveis. 

“Bruuuum, tititi, bruuuum, tititi!!!” E depois de proferir o som de invocação dos galos, galinhas, pintos e sei mais que tipo de ave galinácea, dezenas delas surgiram de todos os cantos, catando os grãos sobre o terrero. 

Mas graças a Deus, e especialmente às minhas preces, os animais sem estimação foram tomando outros rumos, para longe de casa, claro. Ora pra panela, ora pro terreno que algum vizinho criador das aves. Os porcos seguiram o mesmo destino; abatidos com um machado sobre a testa, depois de passar pela água fervente, maçarico e outros instrumentos que não valem a pena descrever aqui, eles iam parar no cozido feito pelas prendadas donas-de-casa.

Meu tio mais novo por parte de mãe criou durante vários meses uma dezena de suínos. Depois de um ano, os pequeninos porcos se tornaram leitões graúdos. A vara foi vendida para outro criador, e ao meu tio lhe rendeu, juntamente com outras economias, seu primeiro carro, ano 83. Enquanto os leitões foram vendidos, quem não tinha preço era Perigo. 

O cachorro desse mesmo tio honrava o nome que tinha. Nunca o vi distante daquela corrente que prendia seu pêlo preto e branco. Mas acho que quem jamais o esqueceu foram os transeuntes abocanhados pelo bicho de estimação da família Fernandes.

Falando ainda em animais de estimação, leia também "O enterro do periquito".

sábado, 12 de novembro de 2011

O primeiro (e último) aniversário de Osmilda

Ilustração: Thiago Calle
Durante 40 anos de idade, ela nunca tivera comemorado sequer uma única festa de aniversário. Aquela seria a primeira e a derradeira de sua vida.

Todavida Osmilda fugira de festejos. Definitivamente não gostava deles. Surpresas, nem pensar. Aquela noite, iluminada por uma imensidão de estrelas que formavam sombras na estrada de chão batido de terra vermelha, deixou também a sombra e a lembrança duma data que, por mais que se queira, jamais será esquecida. No dia 12 de novembro de 2005, Milda fora surpreendida pela comemoração de uma unidade das suas quatro décadas de existência.

Tudo fora organizado às escondidas. O bolo estava sendo confeitado na casa da irmã Salete. Seu filho mais velho ficou responsável pela ornamentação da sala: cartazes indicavam a importância daquela mulher no mundo, o amor escrito nas palavras que pessoalmente ainda em truncadas quando ditas.

Os convidados foram chamados, quase como uma súplica para o não vazamento do suspense. Vazar a surpresa da festa teria em jogo a amizade. E acho que a chantagem funcionou. Ninguém revelara a Osmilda o complô. Ela que para ser arrancada de casa seria um sacrilégio. Que desculpa plantar para uma mulher astuta como sempre fora?

Tudo deveria ser organizado num tempo hábil.  O primogênito dos filhos, em cima duma moto Titan ano 96, fora buscar o bolo na casa da tia. Cuidado era pouco para o transporte de um dos itens mais importantes da festa. Em branco e rosa, vários corações foram sobrepostos. Tufos de balões de mesma cor foram arranjados nos quatro cantos da sala. Na mesa de madeira, uma longa toalha branca ancorava também garrafas de refrigerante, alguns salgadinhos e doces.

Um punhado de pessoas se acomodava encostadas nas paredes da casa. No dia de seu aniversário, Osmilda se encaminhara à casa doutra irmã a sete quilômetros, levada pelo seu irmão caçula. Assim que saíssem de lá, em não mais do que 20 minutos estariam estacionando a moto no quintal. Um ponto de luz indicava que eles aproximavam, exatamente duas horas após sua saída. Desciam a ladeira, e aquele momento seria o instante em que o filho mais velho ordenava para que todas os convidados se aquietassem no interior da sala.

Não apagaram as luzes – seria óbvio demais. Embora até ali tivessem conseguido sua meta: realizar o aniversário surpresa de Osmilda. Tudo funcionara bem. Assim que penetrou o interior da sala, no exato momento em que abrira a porta, um "Parabéns pra você" em coro fora cantado para ela. Suas mãos imediatamente se conduziram ao rosto como para apartar as lágrimas que cairiam em seguida. Ela chorou. Também derramaram lágrimas as irmãs, os filhos e outros mais.

A família estava toda ali. Do lado da porta, sua mãe Marlene fora a primeira a quem ela abraçou. Apertara as outras irmãs. Até chegar o momento em que o filho mais velho agarrou-lhe com força a seu corpo magro e lhe disse “Parabéns, mãe. Eu te amo!”. Depois da choradeira coletiva, foi a hora do batalhão de fotografias. Longe de possuir uma câmera digital, cliques foram devidamente selecionados na máquina onde fora plantado um filme analógico.

O primeiro pedaço de bolo fora dirigido ao filho de mais idade. Em seguida, aos demais quatro. Osmilda admirou os cartazes pregados na parede, os balões coloridos e, principalmente, todas aquelas pessoas na sala - que se tornara palco - para homenagear a pessoa mais importante daquela noite. 

Aquele fora seu primeiro e último aniversário, também sua última festa, o último momento que, com música, comemorou mais um ano de vida. Aquele também fora o dia em que seu rosto afunilado ficou em suas derradeiras fotografias gravadas num pedaço de papel 10X15. Com um boina azulada, ela escondia as poucas mexas de cabelos castanho claro. Aparente, lhe restavam o loiro do cabelo postiço que lhe cobria a cabeça durante alguns meses. Usava a blusa de mesma cor, que ganhara do filho mais velho no dia das mães, seis meses antes. Todos tiraram fotografias com ela.

Não sei se Osmilda sabia que aquela seria última comemoração com os seus. Mas sorriu o quanto pode, enquanto vivenciava em sua terra seus instantes últimos. Viveu por quarenta anos. Teve 5 filhos. Um marido ausente. Uma terra que amou incondicionavelmente. E uma vida feliz embora a infelicidade de dois cânceres  que lhe interromperam brevemente, vida esta muito a ser vivida.

Osmilda Viana de Alencar Souza é a mãe de Vagner de Alencar - seu filho mais velho. E esta é a forma de dar-lhe, assim como em todos os 12 de novembro posteriores, seus parabéns repletos de uma saudade sem fim.

terça-feira, 8 de novembro de 2011

A festa de Zé Branco


61º aniversário de Zé Branco em sua casa, em 1995.

Ele fazia-se de despercebido, mas assim que apontava o mês de agosto, de uma coisa ele tinha certeza: seus filhos comemorariam seu aniversário. Como uma espécie de ritual, o propósito era de que a comemoração tivesse seu suspense, que o aniversariante fosse pego de surpresa, mas como aquilo seguia praticamente um protocolo, que se estendia há anos, esperar que ele não desconfiasse era quase impossível. 

Mesmo que não necessariamente no dia exato de seu nascimento, o festejo não era apenas celebrado pela família dos de Alencar Fernandes. Em peso, moradores das Cavadas e povoadas vizinhos abarrotavam a casa de Zé Branco. Por ali todos se espremiam.

Um bolo coberto pela brancura da banha vegetal era recheado com goiabada derretida com leite na panela no fogão a lenha. Cerejas ou morangos davam o requinte especial. Ainda ali, ornamentando a mesa, sob uma toalha de mesa branca ou às vezes florida, faziam-se presentes algumas garrafas de refrigerante barato, quando não também um caldeirão de alumínio com suco artificial de uva ou laranja cheio até a tampa. Não havia copos ou pratinhos descartáveis.

Cercado por crianças em torno da mesa, Zé Branco soprava as velinhas depois dos sotaques carregados de “Parabéns a você!”.  Por um instante, as luzes eram apagadas. Até o momento de flashes ofuscarem a pequena sala de estar. Sem posturas, agindo na mais instantaneidade que lhe convinha, o “dono dos anos” ignorava a presença da câmera analógica abastecida com um filme de 36 poses.

Ele recebia poucos presentes. No máximo, dos filhos que lhe entregavam camisas de gola alta, sem detalhes, como sempre lhe caíam bem. Eram os herdeiros de São Paulo quem lhe davam os mais regalos mais abastados: embrulhos com sapatos, perfumes, até relógios eram abertos naquela noite.

Zé Branco recebe presentes dos filhos

O som do forró timidamente escapava das caixas de som do aparelho nada potente. Depositado em cima da estante de marfim desgastado, ele dividia o recinto com a falação dos convidados que não precisavam ser convocadas para dar o ar de sua graça.

Depois de saciados com uma fatia de bolo num guardanapo, os convidados partiam para a dança. Na sala de estar o remelexo acontecia. Por ali, todos sacudiam seus corpos em passos amadores. O “dois pra lá, dois pra cá” riscava o chão de piso de cimento queimado de vermelho. Casais de jovens e de mais idade trombavam uns nos outros naquela área onde os sofás haviam sido afastados e a mesa instalada na cozinha.

A festa alongava-se até tarde. Para quem acordava ao som do galo, permanecer até as onze horas da noite era adestrar o sono regular. No alto daquele horário, os vizinhos de “seu” Zé escapavam entre uma das duas portas da própria sala onde festança rolava, ou da cozinha, onde o preparo do cafezinho entre as mulheres sempre acontecia.

E, por anos, na mesma casa, no mesmo mês de agosto, com a presença de todos os filhos, ou não, Zé Branco – ou “seu” Zé, para muitos – comemorava mais um ano de vida, que perdurou até 2006, quando ele saiu de sua casa para morar no seu quintal, embaixo do pé de Angelim.