segunda-feira, 19 de maio de 2014

Antena parabólica

Rede Globo ou Rede Record. Era estranho dizer para qualquer ser humano que meu cardápio televisivo se resumia a estes canais. Xiadamente até conseguia ver outras emissoras. A Rede Vida de Televisão era uma dessas. Passava depois do número 50. E eu me perguntava se alguém assistia a qualquer canal depois do 13, que era da Band e que também não era transmitido na tevê Sharp de casa, de 21 polegadas.

Eu tinha 16 anos, morava no povoado Cavada II, na Bahia, e ostentávamos ser os donos de uma das primeiras televisões com controle-remoto das redondezas. 




Nos tempos como morador de São Paulo, no entanto, zapear inúmeros canais de televisão com o controle era algo tão banal. Aliás, ter uma tevê tamanho 21 não significava nada de ostentação, pelo contrário. Minha prima Edilomar, por exemplo, foi uma das primeiras da família a um televisor grande (que chique era pronunciar TE-LE-VI-SOR) de 29 polegadas e daqueles finos.

Em minha casa, não desfrutávamos de telefonia fixa, imagina possuir tevê a cabo. Assistir HBO, Discovery Channel ou TNT, só em sonhos. Contentava-me apenas e somente pelos passeios na tevê aberta.

Via os clipes com legenda da MTV (na intenção de aprender algumas frases em inglês), as receitas dos programas femininos da Gazeta (graças a eles, aprendi a fazer altos bolos, especialmente de banana com cobertura de caramelo), e os filmes pornôs de Emanuelle, nas madrugadas da Band (claro, escondido dos meus pais e, em especial, dos meus quatro irmãos mais novos. O que aprendi com eles, bom, melhor deixar pra lá).

No Bahia o cenário era totalmente oposto. SKY era literalmente o céu azul cheio de andorinhas que, definitivamente, faziam verão. Por lá, não havia quem não soubesse cenas detalhadas das novelas. E eram os folhetins o programa preferido de muita gente que, até então, só tinha como divertimento falar da vida alheia. Com as novelas não; era possível se envolver com outras muitas histórias que não as do vizinho, da irmã quenga ou do cunhado raparigueiro.

Meu avô Deoclides, desde a compra da primeira televisão, sempre foi viciado por novelas. Não conhecia o nome verdadeiro de nenhum ator, mas sabia de cor e salteado as graças do personagem da novela nova que tive um papel de destaque numa novela antiga.

Aos 70 anos, seu Dió (como era chamado por todos) decidiu frequentar a escola. Tinha como professor seu neto (vulgo eu). Mas a vida de estudante durou pouco tempo. No placar: Novelas da Globo 1 X 0 Vagner de Alencar (mesmo que eu fosse professor e neto preferido).

O novo-ex-aluno optou por acompanhar o dia a dia novelístico a ensaiar as primeiras palavras formadas pelas mãos enrugadas e cheias de calo, com a ajuda do neto adolescente.

Meu avô plantava sua bunda no sofá às 17h30, na hora do início de “Malhação”. Bebericava café trazido em copos americanos pela esposa Aliça. Jantava a comida vinda no prato fundo, também trazido por minha vó assim que começava a novela das sete. Apenas nos horários dos telejornais, saía para ir ao banheiro e espreguiçar braços e pernas. Durante a novela das nove, sonolento, já estava piscando os olhos, que logo se arregalavam na passagem de alguma cena de ação ou de sexo. Sorria à toa e intuía todos os próximos capítulos.

Tia Zau, a mulher do meu outro avô Zé Branco – e que não era nossa avó – levava tão sério as histórias fictícias que, inclusive, xingava os personagens. Noutros momentos, achava que eles falavam com ela.

Eu sempre gostei de novelas. Era apaixonado, em especial, pelas aberturas. Vivia a imaginar como seria a do próximo folhetim. Algumas delas ficaram imortais em minha cabeça. Nunca me esquecerei de a bunda tatuada de “O mapa da mina”; da abertura feita de desenhado animado de “Despedida de solteiro"; e, mesmo sem saber muito o porquê, aquela que mostrava os brasileiros sendo afundados pela lama, de “Deus nos acuda”.

Não queria me tornar um expert em novelas – embora já o fosse. Queria assistir aos documentários do canal Cultura, ver as pegadinhas engraçadas do Programa Silvio Santos. Mas, pra valer, o que mais queria me interessava na tevê era o Show do Milhão.

Quando vivia em São Paulo não perdia um programa sequer. Comprei os produtos mais baratos da cara marca Nestlé e catei tantos outros no lixo, para juntar as oito embalagens necessárias para enviar uma carta e concorrer à participação no programa, na época da parceria com a marca suíça. Lamento até hoje não ter conseguido!

Na Bahia, todas as quartas-feiras dormia na casa de minha tia Erocilma -- no dia em que passava o programa que podia tornar qualquer mero mortal como eu num milionário. E o mais fantástico: por meio dos conhecimentos gerais.

Tia Cilma deixava minha janta pronta. Numa vasilha de alumínio, sobre o fogão a gás sem lenha queimando, a marmita ficava morninha. O menu era o costumeiro: feijão, arroz, macarrão e carne ou frango; às vezes tinha cortado de chuchu ou de mamão verde.

A televisão ficava na sala da casa dela, colado ao seu quatro. Todos os cômodos de meias paradas eram iluminados por conta da tevê ligada. Eu costumava assistir sozinho, já que todos dormiam antes das 23h.

Quando não estavam com tanto sono, Tia Cilma e Bite, seu marido, me faziam companhia. Assim como eu, pareciam que estavam lá, no programa, respondendo às perguntas. E também como eu, ficavam indignados quando a banca de universitários não não sabiam ou erravam uma questão. Chamavámos eles de “universiotários”.

A marmita quentinha e o aluguel da televisão de minha tia acabaram tempos depois. Assim como ela, decidi ter em minha própria casa uma antena parabólica. Só os proprietários de uma antena parabólica tinham o privilégio de zapear outros canais que não a Globo e a Record.

Eu tinha 17 anos quando comprei meu primeiro bem de consumo: aquele trombolho circular que nos trazia mais canais de televisão, e umas das poucas no povoado.

Tudo por conta do meu primeiro salário. Ou melhor, dos primeiros -- fruto dos meses como professor, no povoado Oito Paus, a três quilômetros de onde eu morava. Migrava de bicicleta à noite, para o galpão onde dava aula, por meio do programa Alfabetização Solidária. Ensinava alguns alunos pros quais tive de desenvolver as habilidades como psicólogo ao quebrar a concepção de dona Maria, que dizia que papagaio velho não aprendia a falar. Para eles que mal sabiam o bé-a-bá e dependiam de mim para balbuciar as primeiras palavras ou não aposentar a assinatura feita com o polegar carimbado de tinta.

Todas as noites, na volta para cá, eu precisava pedalar rápido, veloz (aqui caberiam todos os sinônimos de apressado). Pegava impulso, até estender as pernas secas e finas para cima, na fuga das mordidas dos cachorros, que pareciam me esperar ansiosamente, no rumo da casa de Manel de Gil.

O desafio de alfabetizar adultos e escapar de cães bravos, após cinco meses, me renderam seiscentos reais. Sei que poderia comprar roupas novas, um tênis legal, ou até mesmo uma televisão maior e melhor, e à vista. Mas não. Decidi comprar uma antena parabólica. Custou 400 reais -- o resto dei para minha mãe. Valor bem menor à quantia dos 500 reais, que ganhava os participantes com o acerto da primeira pergunta em o Show do Milhão, mas que me trouxe o prazer de ficar jogado no sofá de minha casa, testar meus conhecimentos e participar do meu programa preferido!

segunda-feira, 21 de abril de 2014

Beijo com sabor de vinho tinto

O Crossfox prata “apagou” duas vezes antes de adentrar, por completo – ainda que tortamente –, a garagem. Enquanto ela carrilava o portão, prendendo-o com correntes e cadeado, as sandálias havaianas de Fabiano estalavam no chão, em sintonia – ou não –, com o barulho da sacola de papel branca e laço preto que trouxera naquela noite, minutos da véspera de Natal.



 Fabiano estava de camiseta básica, vermelha, e bermudão azulado. Continuava com o mesmo sotaque paulistano e sorriso luminoso. Até uma hora antes, eram dois seres solitários em suas casas, largados em seus respectivos sofás, em meio a uma segunda-feira preguiçosa que inaugurava o período de férias.

Treze quilômetros depois, o contato via whatsapp deu lugar ao face a face, olho no olho. Suas mãos, que até então apenas digitavam o teclado do Iphone, na zona leste, se encontraram com as dela, na zona sul, ainda na garagem, em antecipação ao abraço acanhado, em seguida.

 Das mãos de Fabiano também vieram aquilo que ele chamou de “presente”. Dentro do embrulho um vinho seco italiano e um panetone de chocolate. “Pra você”.

O panetone ficou intacto; ao contrário do vinho. Havia somente duas taças no armário: o suficiente para embebedarem a noite.

Completadas até a metade, penetraram à sala cada um com a sua taça entre os dedos. Já esparramados sobre o sofá de três lugares, brindaram não sei o quê, ao som de ritmos aleatórios da MPB que tocavam na rádio Nova Brasil FM e invadiam o cômodo por meio do home teather com caixinhas de som penduradas sobre o alto das paredes.

O beijo não demorou a ser dado. “Vem aqui”, disse Fabiano abreviando o toque nos lábios, enquanto arrastava o corpo sobre o seu. Seu beijo permanecia leve e envolvente, como seus dedos finos que tocavam seu rosto.

Ali, não fizeram juras, embora tenham discutido uma relação que nunca havia sido consumada.

O vinho e as canções românticas, que se alastravam pela casa, eram a trilha sonora daquela história, que, há pouco mais de um ano, no entanto, ainda se fazia por meio de momentos paradoxalmente intensos e vazios; vivos e escuros.

E naquela segunda-feira que se resumiria a um dia meramente reflexivo (ela estava sozinha em casa, resgatando momentos e memórias), Fabiano então invadiu seu sossego através de uma mensagem que poderia ter sido simplesmente rejeitada.

Porém, como ser racional quando seu coração pede apenas que você viva?! E ela decidiu viver: viver aquele beijo na sala; aquela transa na cama; aqueles beijos apaixonados; aquela noite inesquecível.

 Às 10h, um abraço e um “Feliz Natal, Feliz Ano-Novo” foram anunciados, assim que o portão se fechou, selando a despedida.

domingo, 13 de abril de 2014

Bicas a pipas

Por aqui as pipas poderiam pintar o céu naturalmente azul.
Não há emaranhados de fios como nos grandes centos urbanos.
Porém, por aqui elas não existem.
Os meninos preferem bicas a pipas.

As pipas poderiam irritar os pássaros:
Os únicos donos dos ares.
Mas não.

As andorinhas voam baixo, fazem manobras espetaculares;
Batem, velozmente, suas asas, sem precisar de mais nada.
Mostram que são livres o suficiente
Para nem precisar competir com os papagaios falsos. 

Os meninos preferem bicas a pipas
Trocam a linha pelo cabresto de um cavalo brabo,
Com um desafio muito mais atraente: amansá-lo.

Por aqui não há pipas;
E sim peladas nos fins das tardes de quartas e sextas-feiras.

Sem cerol e linhas nas mãos,
São pés ágeis e calejados
Que correm rumo à bola no único campo de futebol de várzea,
Cercado de outros pés: de café e abacate.

Por aqui não existem pipas,
Embora elas sejam a forma mais simples de chegar às nuvens.
Nuvens que chegam a ser do tamanho das árvores.

Os meninos preferem pisar firme no chão
Estar entre orquídeas que brotam entre cravos e margaridas
Andar a cavalo, nadar no rio à beira de suas casas, tomar banho de bica
Voar com suas próprias asas, sem carecer de pipas.

Fotos (jan/2014 - Povoado Cavada II, Barra do Choça/ BA)














terça-feira, 8 de abril de 2014

Feitiçaria

Sob a luz das frestas de sua casa alugada, coberta de telhas de cerâmica, Iraci levantou -- com bastante dificuldade -- a blusinha rosada e florida que vestia, para exibir as manchas vermelhas e misteriosas -- parecidas a queimaduras -- que há meses envolvem suas costas.
Já com a pele branca totalmente flácida, em seu rosto enrijecido é quase impossível computar a quantidade de rugas que deixaram para trás a mocidade da mulher que nunca conseguira se queimar com o sol tão cotidiano quanto castigador.
Os pés calejados de Iraci

De corpo miúdo e frágil, as pernas de Iraci estão fininhas e fracas; cambaleiam mesmo nos passos mais curtos. As mãos trêmulas conseguem suportar somente o peso da faca e do fumo de corda quando prepara o cigarro de palha do qual nunca conseguira abandonar o vício.
Sua voz também está diferente: poucos são os dentes que se mantiveram em sua boca, já murcha; seus cabelos lisos continuam tão cândidos quanto maltratados, sempre aprisionados a uma xuxinha, também cor de rosa, que, involuntariamente, combina com o restante de seu vestuário envelhecido.
“O advogado (ou adevogado, como costuma dizer) jogou no rumo 72”, balbuciou Iraci, que, há menos de um ano, conseguira finalmente aposentar-se por tempo de idade. Anos estes dos quais se esquecera com o tempo, ou, na verdade, nunca os soubera de fato.
“Sou a caçula, a derradeira das muié. Finada Mariazinha morreu já faz um bocado de tempo, assim como seu Zé”, rememora, tentando traçar um paralelo, a partir de sua memória frouxa, seu tempo de vida com o dos irmãos que já se foram.
Tiraro três retrato meu. Dero 65, 70 ano... Mas o adevogado disse que não tinha como eu ter menos que 72”, sentencia ela.
Agora, Iraci pode dizer quantos anos possui – embora talvez não necessariamente sejam os seus.
Com o dinheiro da aposentadoria -- retirado mensalmente no primeiro dia útil do mês -- são pagos a feira (para a compra de cereais e mistura), a conta de energia e o aluguel, no valor de R$ 80. “Vou recramar dona Maria desse preço. Tá muito caro, meu filho”, lastima.
É nessa residência que Iraci mora com o filho Marcelo.
Depois de viver como um errante, ele então decidiu ir para os braços da mãe. “Ou do dinheiro dela”, inteiram as bocas miúdas.
Aos 32 anos, Marcelo é o caçula dos três filhos homens de Iraci. Exceto ele, o restante dos irmãos deixou a Cavada II para rumar a São Paulo, e voltar de vez em nunca. “Tem como tu jogar os nome dos meus irmão na internet, para ver se nóis consegue achar eles?”, sonha ele.
Marcelo não passa dos 1,65 m; tampouco dos 60 kg. Possui uma janela entre os dentes escassos e nunca se aparta de um chapéu surrado que cobre os cabelos ralos e anuncia a chegada da calvície.
A casa onde convive com a mãe tem quatro quartos (num total de dez cômodos) e uma área ao fundo repleta de pés de mamão, abóbora, café e outras hortaliças vencidas pelo mato alto que impede a fertilização das frutas e dos vegetais.
Na primeira, das duas salas, sem mesas e cadeiras, tampouco um quadro qualquer pendurado nas meias paredes, quem enfeita o espaço é uma motocicleta Titan KS, seminova, adquirida com parte do valor do salário de Iraci.
Por ali, há apenas uma porta em um dos quartos, que são tapados por cortinas de pano com estampas de peixinhos coloridos, vizinhas a uma gaiola que aprisiona um rolengo – típico passarinho da região.
As meias paredes da casa de Iraci

Um aparelho de rádio a pilha barulha a segunda sala ao som de emissoras mal conectadas que parecem apresentar apenas comerciais. Já no quarto, de Marcelo, uma tevê antiga, de 14 polegadas, está conectada a um aparelho de DVD. Sobre ela, está ainda caixa de sapato que guarda nem meia dúzia de filmes: um pornô e outros “de luta e de cobra”, como garante Marcelo.
Na casa de Iraci o chão tem o piso vermelho, e a poeira que sai da estrada forma tapetes de pó por todo o ambiente. Lá, a água não cai na torneira, embora haja distribuição no vilarejo. Mãe e filho preferem tomar banho de balde a sentir a água cair do alto de chuveiro sobre as suas costas. A luz de duas telhas plásticas, encaixadas às de cerâmica, ajudam as lâmpadas nada econômicas a clarearem, juntas, todos os espaços da casa.
Em seus 72 anos de idade (sejam eles fictícios ou não), a única certeza de Iraci é a de que está proibida de ingerir bebidas alcoólicas: uma cirrose compromete seus dias; tempos estes que, noutrora, foram vivazes e banhados a cachaça, geralmente pura.
Enferma e esmorecida por sentir que toda vez que deita em sua cama o mundo parece girar, as manchas começaram a queimar não apenas suas costas, mas também seu juízo.
Iraci em sua cozinha
Iraci, que sempre optou por drogas caseiras para deter suas doenças, resolvera atender aos conselhos de um médico – ainda que com resiliência e muita insistência de conhecidos preocupados com a saúde de uma das mulheres mais icônicas da região.
Desconfiada do prognóstico básico de uma alergia, concluiu a própria Iraci aquilo que considera ser a origem de sua debilitação: “É feitiçaria, Vago (Iraci nunca conseguira pronunciar meu nome)! É feitiçaria, meu filho!”.

domingo, 22 de dezembro de 2013

É tempo

















É tempo de pedir para que ele desça do ônibus 
E volte para que beba com você e te dê um abraço caloroso?
Ou é tempo de dizer "ok", "tudo bem", "siga"
Que outras nuvens tragam um tempo menos nebuloso?

É tempo de querer ser convidado 
Ou esperar sentado um convite nunca antecipado?

É tempo de seguir Pablo Neruda:
"O maior dos sofrimentos é nunca ter sofrido"
Ou ler livros de autoajuda?

Ser mais cético, exterminar de vez o cupido
Ou andar com um pezinho de arruda à beira do ouvido?


É tempo de Aturar as desculpas
De suportar as mensagens enxutas
Contrariar o tempo que passa
Ou estraçalhar de vez a vidraça?

É tempo de sentir que 14 horas
Podem passar tão rápido quanto uma chuva de verão
Ou é tempo de dizer "não"
Mesmo quando se quis dizer "sim"?

É tempo
Enfim

É presente, é futuro ou é passado
No caso, nossos tempos não foram cruzados
Como cerveja e churrasco
Cinema e pipoca
Chave e cadeado
Como a simples e clichê rima:
Amar e ser amado

terça-feira, 27 de agosto de 2013

14 horas

Vinte minutos à espera num ponto de ônibus. Não era por ele -- o transporte público -- que ela aguardava, mas sim por um desconhecido que acabara de conhecer por meio de um aplicativo que geolocaliza seus usuários. Para vencer o atraso, matava o tempo jogando candy crush no iPhone. Viviam em municípios diferentes, embora distantes um do outro apenas 650 metros.

“Ferrou, minha mãe acabou de chegar em casa”, anunciou a mensagem no app da menina, enquanto ela ainda rumava ao posto de gasolina onde se encontraria com o rapaz. “Mas você não quer ao menos conversar num barzinho ?, propôs.

Encarando os primeiros contratempos, trataram de adicionar seus contatos ao Whatsapp: “Estou a caminho”, alertou ele no webchat. Ao seu lado, ela avistava casais estacionando na praça, que observavam, com romantismo, a água jorrar de um gigantesco chafariz, além de avistar passageiros descerem e subirem nos ônibus dos quais nunca adentrou.

“Onde você está?”, interrogou ele. “Do outro lado da rodovia, no ponto de ônibus, em frente ao McDonalds”, detalhou ela. “Cheguei”. Segundos antes, no entanto, ela havia se encaminhado para a faixa de pedestre, a vinte passos dali, onde cruzaria a rodovia em direção ao local marcado. “Cadê você?”, perguntou ele, assim que chegou onde ela anteriormente estava. “Estou aqui, logo à frente de você”, avisou ela, acenando com o braço esquerdo.


Ele tinha os cabelos negros tão escuros quanto seus olhos. Sua pele, cor de bronze, sem qualquer artificialidade,estava coberta por uma camisa xadrez por baixo de um blaser verde musgo. Não passava de 1,80 m e calçava botas de couro marrom nos pés tamanho 42. 

Cumprimentaram-se com um aperto de mãos e um abraço acanhado. Ele logo sorriu, exibindo seus dentes grandes e alvos. Ela, naturalmente simpática, brincou com seu atraso. “Obrigado por me fazer esperar por vinte minutos...”. Sorriram.

O lugar pré-combinado ficou para escanteio. Deixaram de ir a um açaí, para rumarem a um bar desabitado, numa rua repleta de outros botequins.

Sentaram-se à uma mesa de dois lugares e não discutiram no pedido. “Um Skol, por favor”, atalhou ele. A cerveja chegou junto com petiscos gratuitos à tira-gosto. Esqueceram-se de brindar, ignorando o ditado que diz dar azar àqueles que não realizam tal saudação.

Ela repousou os óculos de grau sobre a mesa de madeira, no mesmo momento em que ele, com ironia, apresentava sarcasticamente as redondezas para ela -- que embora os dois anos e meio do município vizinho não conhecia quase nada.

Bem humorados, pediram mais uma cerveja a qualquer um dos dois garçons à disposição. Na tevê plantada em frente ao casal, a partida de futebol entre flamengo e grêmio logo foi substituída por clipes de cantores sertanejos universitários. Papearam sobre universidade, família e ex-namoros.

Ele, filho de chileno com paulista; ela, herdeira de pernambucano com pernambucana. Ele 23; ela 25. Quarenta minutos depois, apanharam seus copos cheios sentido à área externa do bar. “Se importa se eu fumar?”, perguntou ele. “Para quem se acostumou com o cheiro de maconha dos amigos que apreciam a erva, cigarro não é nada”, brincou ela. Poucos minutos depois, porém, uma vendedora ambulante quebrou o diálogo, oferecendo os “doces da Preta”. Dispensaram a compra, mas não o cigarro pedido por ela, que não cessou: “E que tal um doce erótico?”, apanhou de uma bolsa miúda e florida um chocolate preto em formato de pênis. O trio sorriu. E ela partiu, dizendo que procuraria “mais movimento” na Vila Madalena.  

Entre uma baforada e outra, a dupla narrou seus porres: dos amores e desavenças com a tequila à mistura de drinks com sabor de morango e pimenta. Deram luz a baladas lights e namoros fulgazes; a viagens ao Nordeste ao marasmo domiciliar; aos passos de forró às apresentações no Circe de Soleil.

De dez para às vinte horas às dez para vinte e três. Se o tempo havia voado, o encantamento estava tão bem assentado quanto as estacas que cercam as mangas onde se criam jumentos bravos.

Estavam na quinta cerveja, quando um olhar recanteado e um sorriso libertino entregaram um convite. “Diga”, inqueriu ele, retribuindo com mesmo sorriso, demonstrando que aquelas expressões não precisavam mais de qualquer explicação.

A sexta cerveja arrematou a saideira. E o terceiro cigarro, as últimas tragadas. Dividiram a conta de R$ 46, deixando, juntos, o bar rumo à casa dela, a dez minutos à pé.

Do lado de fora do primeiro portão a certificação: luzes apagadas. Como supunha, ninguém estava em casa. Adentraram à garagem. Ela abriu o segundo portão; ele rompeu, em seguida. Mais alguns uns passos no corredor, até que a porta que dá acesso à cozinha por fim foi aberta. Ele adiantou. Parou ao lado da mesa, em frente à pia onde havia meia dúzia de copos sujos de café.

O giro da chave na porta foi tão rápido quanto os muitos beijos ardentes que dariam dali por diante.

As mãos dela, com seus dedos finos, agarraram com força o pescoço dele em meio a movimentos rítmicos. Os braços dele, robustos e ágeis, se envolveram facilmente ao corpo magro dela. Beijaram-se, revezando entre o beijo à la luta de línguas ao beijo agarrado – quando ela tomava os lábios dele entre os seus.  

Abruptamente ela se apartou dele, abrindo a “porta sanfonada” de seu quarto adjacente ao cômodo parede à cozinha. Miraram-se por alguns instantes, até ele encostá-la às bordas da pia, passando a língua pelo seu pescoço. “Vem”, intimando-o, ela segurou a mão direita dele, arrastando-o para o interior do cômodo.

Um beijo em pé, ao lado da cama de solteiro, antecipou o momento em que ele deitou-se de braços abertos sobre a cama de solteiro. Ainda totalmente vestidos, ela montou-se sobre ele, dando continuidade aos beijos incessantes.

A luz acesa entregava o prazer latente nos olhos de ambos, enquanto seus corpos despiam-se involuntariamente: calças e camisetas ao chão; uma cama pequena para horas paradoxalmente largas de prazer.

Sem dificuldade, sobre si, ele arrancou a blusa dela, que retribuiu automaticamente o mesmo ato. Ela deslizou, em sincronia, as duas mãos sobre seu abdome definido, até repousar sobre sua calça jeans.

Ele usava uma cueca branca, trazendo mais tesão àquela noite, que, assim como garante o clichê, era de fato "uma criança". Nus, os beijos alcançaram, sem exceção, cada pedaço de seus corpos quentes.

As horas passaram despercebidas, bem como a quantidade de posições sexuais – que dispensaram qualquer consulta ao kama sutra.

Gozaram de cada espaço do quarto minúsculo: apoiaram-se no guarda-roupa, sentaram-se à beira da cama, ampararam-se à parede de azulejos encardidos.

Penetram à cozinha. Ela, que nunca imaginara sentar-se um dia sobre a pia, estava lá. Encarava-o intensamente, quando os beijos cessavam. Em seguida, foi ele quem sentou-se sobre uma das quatro cadeiras (que faziam parte da mesa que também fora cúmplice daquela noite), encaixando-a em seu colo.

Uma hora e meia depois, foram vencidos por um sono leve. Ela repousou sobre seu braço estirado, enquanto ele cochilava de barriga para cima. Viraram-se dezenas de vezes, revezando a clássica dormida de conchinha. Distribuíram beijos sonolentos nesse ínterim.

Despertaram às três da madrugada. Desnuda, ela partiu à cozinha em busca de água gelada, embora raramente a bebesse. Contentou-se com a natural. Ele bebeu no mesmo copo que ela, que ainda trouxe uma garrafa ao quarto, largando-a de canto para atirar-se novamente sobre ele.

O sono foi consumido pela consumação sexual, estendendo até às quatro e meia da manhã. Seus gemidos e declarações eróticas misturavam-se com o barulho dos carros que começavam a sair das garagens vizinhas e com as conversas das pessoas que sofriam com o desprazer de levantar em pleno domingo, antes mesmo de o Sol nascer.

Sem banho, preferiram que aquela fragrância libidinosa continuasse a invadir não apenas seus corpos, como também o quarto, a cama e o cobertor.

Aliviaram, repousando novamente um sobre o outro. Intercalavam, a cada despertar, beijos na testa, sobre os lábios, ou em torno do pescoço. Se ela dava às costas, levava consigo seu braço. Embora dormentes, tivessem forças até mesmo entrecruzar os dedos uns nos outros.

Acordaram às dez para as nove da manhã sob a luz do Sol cortando a cortina bege do quarto. 

“Preciso ir”, disse ele. “Fica mais um pouco”, pediu ela. 

Ele cedeu; ela o beijou em forma de agradecimento.

Meia hora depois, ela foi a primeira a levantar. Pegou uma chaleira, esquentou água no fogão automático para preparar o café. O cheiro chegou ao quarto a partir da porta sanfonada entreaberta. Sentada à beira da cama, anunciou: “Fiz café para você!”.

Ela regressou à cozinha para por à mesa. Esquentou leite, apanhou pães sovados e bolachas cream creaker. Minutos depois, já vestido e despenteado, ele já na cozinha. Deu-lhe um beijo antes de partir ao banheiro e outro na volta.

Sentou-se sobre a mesma cadeira que horas antes utilizara não para apoiar-se enquanto beberica o café preto e forte em uma xícara.

“Preciso ir”, repetiu ele. “Fica mais um pouco”, pediu ela. 

A porta foi aberta sem qualquer tipo de pressa, ao contrário de algumas horas antes, quando adentraram juntos, eufóricos e ardentes, naquele recinto. 

“A gente vai se ver de novo?”, perguntou ela. “A gente vai se falando”, respondeu ele, sem muito convencimento. 

Abriram o portão do corredor e, por fim, o da garagem. “Tchau”, disse ele, dando-lhe o último dentre os incontáveis beijos, selando aquele encontro, que pode ter se resumido a quatorze horas.

terça-feira, 13 de agosto de 2013

Beijo com sabor de vinho branco

Desci a rua da Consolação em passos acelerados  -- bem mais apressados do que os de costume. As pessoas e os carros passavam por mim quase que invisíveis. À minha frente, uma tela imaginária exibia, em flashbacks --  assim como nos filmes --, uma série de lembranças que sonhara eu estivessem apagadas há um bom tempo.

E quanto mais rápidas se tornavam as passadas, mais fortemente ressurgiam as recordações. Elas que, infelizmente, haviam ganhado apenas um “pause”.

Eram pouco mais de 22h, e o único passado presente naquela sexta-feira julina eram os momentos universitários reportados numa mesa de bar, ao lado do Mackenzie, onde se graduaram a meia dúzia de jovens jornalistas.

No entanto, os passos largos me levavam a um momento interrompido há nove meses, exatamente ao mesmo lugar do primeiro e derradeiros encontros, fruto de todas essas recordações que embriagavam minha alma ainda recheada de melancolias.

Apressado, amparava a mochila nas costas com a mão esquerda, enquanto a bolsa batia a cada passo ligeiro. E quanto mais próximo eu chegava do destino final, paradoxalmente, desejava o atraso. "Assim, não a encontraria mais”, pensava comigo mesmo. Mas não.

Pouco mais de meia hora desde o primeiro contato, lá estava eu. Queria não ter recebido aquela mensagem no whatsapp, de um número desconhecido, perguntando como eu estava. “Estou bem”, respondi ainda sem saber quem era, até que o armazenamento do contato por meio de uma letra aleatória, um “F”, trouxe imediatamente a figura do seu rosto negro e dentes alvos.

Quando cheguei na rua, já ao longe, pude notar que ela me aguardava na parte inferior do bar. Abortei a pressa para falar comigo mesmo instantes antes de encará-la definitivamente. “O que estou fazendo?”, me autoinqueri, sem sucesso.

Ela arregalava os olhos e um sorriso em minha direção. Já eu não conseguia mirá-la proporcionalmente. Nos demos as mãos na grade que separava o bar, de dois andares, da rua. Enquanto ela me olhava com aquele sorriso colossal, minha face, sem expressão alguma, parecia carregar uma gigantesca interrogação. “Não vai entrar?”, me questionou. Sem dizer nada, adentrei o espaço, assim que apanhei a comanda do segurança na entrada do estabelecimento.

Com um copo de vinho branco na mão ela me abraçou firme, ao passo que meus braços compridos não tiveram forças para entrecruzar seu corpo magro.

“Quanto tempo...”, indagou ela, procurando iniciar um diálogo pacífico. Mudo, eu procurava barrar uma possível explosão de frases impulsivas que poderiam sair da boca de um típico ariano.

O bar estava cheio, tocava, randomicamente, estilos que variavam do MPB ao sertanejo universitário. Subimos às escadas em direção à mesa onde se encontravam três de seus amigos. “Você sumiu!”, disse um deles que havia me excluído do Facebook há alguns meses. “É... Sumi”, controlando, com moderação, o amargor por detrás das palavras que poderiam ser soltas a qualquer momento.

“Você está mais bonito”, me elogiou ela, enquanto me olhava como quem estivesse à frente de uma nova pessoa. “Continuo o mesmo... Assim como a mim você me parece”, respondi, seco.

“Não sei... Você tá diferente”, insistiu.

“Pode ser a barba que tenha me dado um novo ar”, contra-argumentei.

Com meus olhos fixos aos seus, embora a escuridão daquele bar, eu buscava encontrar respostas dentro de suas pupilas dilatadas.

Defronte a um enorme espelho, na parte superior do estabelecimento, ela via sua própria imagem. Sorridente, aparentemente feliz em ver, me pediu para “abaixar a guarda” na tentativa frustrada de um abraço.

“Por que deveria?”, retruquei essa que era a indagação que dominava qualquer discurso que eu pudesse empregar naquela noite.

“Por que... ?”, e antes de qualquer discussão de relação que não mais existia, ela interrompeu o princípio do que seria um interrogatório, para se encostar ainda mais próxima a mim.

E enquanto meu corpo desejava o seu, minhas lembranças rememoravam, há nove meses, nós dois, sentados em uma mesa daquelas, trocando beijos recíprocos e sorrindo, aparentemente felizes.

Porém, irresistivelmente, cedi. Envolvi seu corpo ao meu e, ritmicamente, nos beijamos, beijamos... E, a cada intervalo, eu fixava meus olhos nos seus à procura de respostas que decerto não seriam respondidas numa noite que poderia ser resumir "a apenas uma noite".

“Havia esquecido que seu beijo era tão bom”, revelou ela. “Você se esqueceu tanto coisa...”, completei, quase que em sussurros.

Ficamos ali por quase uma hora, até seus amigos a intimarem sua despedida, muito postergada por ela, que amparava o copo na mão direita, levemente cambaleante.

Descemos as escadas rumo ao caixa. Paguei apenas a entrada no bar: R$ 6, enquanto ela desembolsou R$ 180. Já meio embriagada, demos um beijo de despedida ainda dentro do bar. Um beijo com sabor de vinho branco, seguido de um toque no rosto.

Do lado de fora, o início do fim do reencontro foi selado por sua inquisição. “E agora?”. Com sarcasmo, retruquei, emendando: “Meu número você tem!”.

Viramos as costas, descortinamos as lembranças. E, confesso: não sei se definitivamente a taça foi quebrada ou se será remendada, se demos adeus ou um até logo

sábado, 23 de fevereiro de 2013

Cozinha


Qualquer arquiteto ou designer de interiores teria uma verdadeira síncope. As cozinhas, em uma analogia grosseira, se assemelham ao trânsito indiano. Sempre achei formoso a luminosidade das vasilhas de alumínio penduras sobre as tiras de cordas, quando não nas prateleiras simples de madeiras, escoradas sempre aos cantos – mas esta não é a realidade exposta nesta crônica.

Os chapéus são figuras assistentes no cômodo onde impera o fogão a lenha. De feltro ou de palha, o utensílio ganha espaço normalmente sobre os pregos afixados nos cantos dos batentes das portas.



As mesas também são autênticos armários. Sobre elas estão os potes de café e açúcar, as garrafas de café e copos de plástico e de vidro. No recinto ainda está o rolengo que enche o peito quando a luz apaga e se emudece ao acender do interruptor.

Se a cozinha é o compartimento onde se preparam os alimentos, não deixa de ser – ao menos na casa da minha avó paterna – o ambiente onde se amontoa um pouco de tudo. Tem tanque de lavar, caixas variadas e ao menos duas mesas que sustentam miudezas.

As galinhas e seus pintinhos entram sem convite. Ciscam o que podem. Encontram o aparto da vassoura rumo ao portão mais próximo.