quinta-feira, 8 de abril de 2010

Lição de casa

Escola Municipal Rui Barbosa


Filho, irmão, amigo... e agora, um jovem professor.
Uma mútua lição de aprendizado.


Chegava às 18h30. Após alguns passos, o professor se encontrava em sala de aula. A casa onde onde ele morava ficava do lado da Escola Municipal Rui Barbosa, no povoado de Cavada II, no sudoeste da Bahia. Ali, no interior da sala multisseriada, aguardava a chegada de seus não mais de vinte alunos.

Seu Joaquim era um dos alunos mais pontuais. No topo de seus 63 anos, ganhava o título de estudante assíduo. Não faltava um dia sequer, e quando isso acontecia, decerto, na aula seguinte, a primeira coisa que  faria era justificar sua ausência. Com a bolsa transversalmente transportada entre os ombros, além do inseparável chapéu cobrindo os poucos cabelos, ele adentrava a sala de aula. Sentava-se, religiosamente, na primeira fileira, ao lado esquerdo, onde ficavam os alunos de nível de alfabetização.

- Boa noite!  - o anfitrião anunciava sua entrada.

- Boa noite! Bença, Seu Joaquim! - cumprimentava o professor ao seu aluno.

A turma de alunos chegava à medida que as sete horas da noite apontavam. Dona Adelita era aluna aplicada. O lenço fino na cabeça era obrigatoriedade para ela que, como tantas mulheres da região, cobriam o cabelo grisalho com o tecido. Os óculos pendurados no pescoço eram necessidade. Sem os acessórios seria difícil enxergar as letras, que por si só ainda eram obscuras para ela. Os anos consumiram a visão aguçada nos tempos de menina e a oportunidade de ir à escola. Ela sequer havia se matriculado em uma escola, e estava ali enfrentando o desafio de familiarizasse com as palavras, essas que até então eram códigos indecifráveis para ela.

E aos poucos, ela conseguiu juntar as letras e formar duas importantes coisas em sua vida: o nome completo - Adelita Pereira da Silva - e a convicção de que o tempo não levou sua autoconfiança.

O professor em questão, um jovem garoto, beirava os 17 anos de idade. Um baiano magricelo, de estatura mediana, um tanto tímido, de olhos clínicos, cabelos castanhos e de cor parda.

O debruçar-se sobre um caderno, a leveza dum lápis no cruzamento com as linhas da folha de papel - embora o desconforto os dedos calejados do peso da enxada marcada por tantos anos. Parecia não haver maior lição de casa do que essa. Foi mais do do que o desenho duma assinatura sobre um ponto demarcado, mas a certeza de que seus alunos nunca mais sujariam o dedo polegar com a tinta de carimbo por não saber escrever o nome.

Essa era a lição mútua de aprendizado do jovem professor para com seus alunos. Mais do que alfabetizar jovens e adultos, que nada ou pouco sabiam do poder das palavras ou do encanto da leitura, foi, sobretudo, tornar-se rico de conhecimento por lidar com pessoas com experiências fantásticas de vida.

domingo, 4 de abril de 2010

Um reencontro de olhares


"Nenhuma palavra.
Somente os olhares de dois amigos
Uma década depois"

2 de abril de 2010. 14h45.







Já atrasado para o martírio em trabalhar em plena sexta-feira santa, peguei o primeiro ônibus em direção à emissora onde era estagiário. Pensar nas tradições vividas no tempo de infância foi o que esteve mais presente em meus pensamentos nesse dia, em que curtos flashes me remetiam aos banquetes e fartura de peixe à mesa para celebrar a data sagrada. Mas pausemos por aí essas lembranças.

Já devidamente acomodado em um dos assentos individuais, próximo a catraca do ônibus, atento-me a um rapaz que entrega o dinheiro da condução à cobradora para a liberação da catraca.A familiaridade do rosto fez-me fixar o olhar àquele rapaz. Uma evidente pinta escura estampada do lado direito da face, o cabelo castanho aparado baixo, e aquela irreconhecível feição tímida... Seria ele: o menino com quem estudei na 3ª série C, há 11 anos?

- Moço, seu troco! - a cobradora chamou-o, direcionando o dinheiro que ele havia esquecido. André, que não notara minha presença por ali, virou-se, balançou a cabeça como se quisesse dizer “como sou cabeção”, pegou a moeda e dirigiu-se ao fundo do veículo. Ainda mantive o olhar nele, para de fato, certificar-me que era aquele menino que torcia pro São Paulo e gostava de pintar as linhas das folhas do caderno cada uma de uma cor. Era ele sim.

“Mas ir atrás dele e dizer ‘Oi, lembra-se de mim... Sou o Vagner! ’” Fiquei sem jeito, ao mesmo tempo em que tentava criar coragem para ir lá e certificar que ele era realmente o meu colega de classe. “Aquele garoto com quem estudei a 3ª e 4ª séries do ensino fundamental na EEPG Professor Homero dos Santos Forte”.

Fazíamos o mesmo percurso diariamente de volta para casa. E normalmente sentávamos juntos na sala de aula.E desde o final do ensino primário, em 1999, nunca mais havíamos nos visto.Já se passava das 15h, quando levantei-me, direcionando meu dedo indicador para acionar o botão de alerta à parada. Olhei pro fundo, e lá estava o André, na derradeira poltrona. Encarei-o... Esperando um retorno dele.

Ele me olhou. Meio assustado, me cumprimentou, de forma que seu rosto estivesse desenhado “será que é ele mesmo?” E era eu. Desci. Emocionado de tê-lo revisto. E decepcionado por termos nos reencontrado apenas por olhares, não mais do que 30 segundos. Assim que o ônibus seguiu, pude vê-lo esforçar-se a olhar para trás, através do vidro embaçado do veículo e, certamente, confirmar se realmente era eu, aquele menino que já havia dado lugar ao físico de um homem, uma década depois.