Rede Globo ou Rede Record. Era estranho dizer para qualquer ser humano que meu cardápio televisivo se resumia a estes canais. Xiadamente até conseguia ver outras emissoras. A Rede Vida de Televisão era uma dessas. Passava depois do número 50. E eu me perguntava se alguém assistia a qualquer canal depois do 13, que era da Band e que também não era transmitido na tevê Sharp de casa, de 21 polegadas.
Eu tinha 16 anos, morava no povoado Cavada II, na Bahia, e ostentávamos ser os donos de uma das primeiras televisões com controle-remoto das redondezas.
Nos tempos como morador de São Paulo, no entanto, zapear inúmeros canais de televisão com o controle era algo tão banal. Aliás, ter uma tevê tamanho 21 não significava nada de ostentação, pelo contrário. Minha prima Edilomar, por exemplo, foi uma das primeiras da família a um televisor grande (que chique era pronunciar TE-LE-VI-SOR) de 29 polegadas e daqueles finos.
Em minha casa, não desfrutávamos de telefonia fixa, imagina possuir tevê a cabo. Assistir HBO, Discovery Channel ou TNT, só em sonhos. Contentava-me apenas e somente pelos passeios na tevê aberta.
Via os clipes com legenda da MTV (na intenção de aprender algumas frases em inglês), as receitas dos programas femininos da Gazeta (graças a eles, aprendi a fazer altos bolos, especialmente de banana com cobertura de caramelo), e os filmes pornôs de Emanuelle, nas madrugadas da Band (claro, escondido dos meus pais e, em especial, dos meus quatro irmãos mais novos. O que aprendi com eles, bom, melhor deixar pra lá).
No Bahia o cenário era totalmente oposto. SKY era literalmente o céu azul cheio de andorinhas que, definitivamente, faziam verão. Por lá, não havia quem não soubesse cenas detalhadas das novelas. E eram os folhetins o programa preferido de muita gente que, até então, só tinha como divertimento falar da vida alheia. Com as novelas não; era possível se envolver com outras muitas histórias que não as do vizinho, da irmã quenga ou do cunhado raparigueiro.
Meu avô Deoclides, desde a compra da primeira televisão, sempre foi viciado por novelas. Não conhecia o nome verdadeiro de nenhum ator, mas sabia de cor e salteado as graças do personagem da novela nova que tive um papel de destaque numa novela antiga.
Aos 70 anos, seu Dió (como era chamado por todos) decidiu frequentar a escola. Tinha como professor seu neto (vulgo eu). Mas a vida de estudante durou pouco tempo. No placar: Novelas da Globo 1 X 0 Vagner de Alencar (mesmo que eu fosse professor e neto preferido).
O novo-ex-aluno optou por acompanhar o dia a dia novelístico a ensaiar as primeiras palavras formadas pelas mãos enrugadas e cheias de calo, com a ajuda do neto adolescente.
Meu avô plantava sua bunda no sofá às 17h30, na hora do início de “Malhação”. Bebericava café trazido em copos americanos pela esposa Aliça. Jantava a comida vinda no prato fundo, também trazido por minha vó assim que começava a novela das sete. Apenas nos horários dos telejornais, saía para ir ao banheiro e espreguiçar braços e pernas. Durante a novela das nove, sonolento, já estava piscando os olhos, que logo se arregalavam na passagem de alguma cena de ação ou de sexo. Sorria à toa e intuía todos os próximos capítulos.
Tia Zau, a mulher do meu outro avô Zé Branco – e que não era nossa avó – levava tão sério as histórias fictícias que, inclusive, xingava os personagens. Noutros momentos, achava que eles falavam com ela.
Eu sempre gostei de novelas. Era apaixonado, em especial, pelas aberturas. Vivia a imaginar como seria a do próximo folhetim. Algumas delas ficaram imortais em minha cabeça. Nunca me esquecerei de a bunda tatuada de “O mapa da mina”; da abertura feita de desenhado animado de “Despedida de solteiro"; e, mesmo sem saber muito o porquê, aquela que mostrava os brasileiros sendo afundados pela lama, de “Deus nos acuda”.
Não queria me tornar um expert em novelas – embora já o fosse. Queria assistir aos documentários do canal Cultura, ver as pegadinhas engraçadas do Programa Silvio Santos. Mas, pra valer, o que mais queria me interessava na tevê era o Show do Milhão.
Quando vivia em São Paulo não perdia um programa sequer. Comprei os produtos mais baratos da cara marca Nestlé e catei tantos outros no lixo, para juntar as oito embalagens necessárias para enviar uma carta e concorrer à participação no programa, na época da parceria com a marca suíça. Lamento até hoje não ter conseguido!
Na Bahia, todas as quartas-feiras dormia na casa de minha tia Erocilma -- no dia em que passava o programa que podia tornar qualquer mero mortal como eu num milionário. E o mais fantástico: por meio dos conhecimentos gerais.
Tia Cilma deixava minha janta pronta. Numa vasilha de alumínio, sobre o fogão a gás sem lenha queimando, a marmita ficava morninha. O menu era o costumeiro: feijão, arroz, macarrão e carne ou frango; às vezes tinha cortado de chuchu ou de mamão verde.
A televisão ficava na sala da casa dela, colado ao seu quatro. Todos os cômodos de meias paradas eram iluminados por conta da tevê ligada. Eu costumava assistir sozinho, já que todos dormiam antes das 23h.
Quando não estavam com tanto sono, Tia Cilma e Bite, seu marido, me faziam companhia. Assim como eu, pareciam que estavam lá, no programa, respondendo às perguntas. E também como eu, ficavam indignados quando a banca de universitários não não sabiam ou erravam uma questão. Chamavámos eles de “universiotários”.
A marmita quentinha e o aluguel da televisão de minha tia acabaram tempos depois. Assim como ela, decidi ter em minha própria casa uma antena parabólica. Só os proprietários de uma antena parabólica tinham o privilégio de zapear outros canais que não a Globo e a Record.
Eu tinha 17 anos quando comprei meu primeiro bem de consumo: aquele trombolho circular que nos trazia mais canais de televisão, e umas das poucas no povoado.
Tudo por conta do meu primeiro salário. Ou melhor, dos primeiros -- fruto dos meses como professor, no povoado Oito Paus, a três quilômetros de onde eu morava. Migrava de bicicleta à noite, para o galpão onde dava aula, por meio do programa Alfabetização Solidária. Ensinava alguns alunos pros quais tive de desenvolver as habilidades como psicólogo ao quebrar a concepção de dona Maria, que dizia que papagaio velho não aprendia a falar. Para eles que mal sabiam o bé-a-bá e dependiam de mim para balbuciar as primeiras palavras ou não aposentar a assinatura feita com o polegar carimbado de tinta.
Todas as noites, na volta para cá, eu precisava pedalar rápido, veloz (aqui caberiam todos os sinônimos de apressado). Pegava impulso, até estender as pernas secas e finas para cima, na fuga das mordidas dos cachorros, que pareciam me esperar ansiosamente, no rumo da casa de Manel de Gil.
O desafio de alfabetizar adultos e escapar de cães bravos, após cinco meses, me renderam seiscentos reais. Sei que poderia comprar roupas novas, um tênis legal, ou até mesmo uma televisão maior e melhor, e à vista. Mas não. Decidi comprar uma antena parabólica. Custou 400 reais -- o resto dei para minha mãe. Valor bem menor à quantia dos 500 reais, que ganhava os participantes com o acerto da primeira pergunta em o Show do Milhão, mas que me trouxe o prazer de ficar jogado no sofá de minha casa, testar meus conhecimentos e participar do meu programa preferido!