quinta-feira, 22 de setembro de 2011

O garoto que não gostava de São Paulo

Povoado Cavada 2, BA (1995)
As roças de café e plantações de milho do avô eram cenário para o polícia-e-ladrão. Com os primos ia pescar na barragem do fazendeiro mais rico das redondezas; quando não nos aboletávamos nas cachoeiras escorregadias espalhadas entre as florestas dali.

Ele nasceu em solo baiano. Acompanhou seus tios em direção ao rio. Ajudou a conduzir a mula que transportava os tambores de água nas laterais do animal. Seguiu suas tias, quando elas saíam para lavar roupa.

Com uma ‘rodia’ no topo na cabeça, as mulheres partiam com suas bacias equilibrando-as entre as ladeiras ingrimes que levavam rumo ao rio mais próximo. O mesmo itinerário era feito pelos maridos, que trasladavam a água para o consumo. Por lá mesmo se banhavam.

Ainda moleque, saiu do mato onde nasceu, em Vitória da Conquista (BA), para cruzar o asfalto com destino a maior cidade do Brasil. Passou a respirar o ar poluído. Não mais despertou ao som do galo. Não mais correu entre as roças dos avós e, definitivamente, passou a detestar São Paulo.

A capital permaneceu miúda perante à importância do lugar onde se criou e viveu a infância sem os muros petrificados da cidade para onde se mudou. Enquanto seus parentes queriam “ganhar a vida” em São Paulo, o menino aprendeu a desgostar desselugar quase como repudiou a vida inteira a buchada da qual esses mesmos parentes nunca conseguirão viver sem.

sexta-feira, 9 de setembro de 2011

A novela do meu avô

Meu avô nascera no meio da década de 40. Durante algumas dúzias de anos, a única coisa que assistira com frequência foram as surras que dava nos filhos atentados ou os veados e "luís-cacheiros" que caçava nos matagais de onde se criara.

Seu Dió, ou Deoclides - para quem preferir seu nome de batismo - sempre foi "cabra-macho". Saía à caça com os filhos, além de admirar as partidas de futebol dos herdeiros, também artilheiros.

Até o final dos anos 90, seu Dió e a família viviam sob a luz do candeeiro. Energia elétrica era regalia àqueles que eram abastados de uma condição financeira um bocado melhor. Em cada quarto, havia seu utensílio. No topo da sala, um lampião iluminava todo o cômodo. Depois que puderam acender a luz por meio do interruptor nas paredes de reboco fino, tudo mudou.

Um rádio trazia música àquela casa já há um tempo, mas depois que adquiriram uma TV - ainda em cores preto e branco - foi a revolução do povoado. A sala, com cepos e um sofá surrado, era plateia para a apresentação das cenas que explodiam daquele tubo de 14 polegadas.

Posso dizer que a vida de seu Dió mudou; claro, a de todos também, afinal, esqueceram um pouco de suas vidas particulares para acompanhar a rotina diária dos personagens que tanto os entretinham. As telenovelas foram substituindo as narrativas reais por aquela sequência ficcional de acontecimentos instigantes.

Em pouco tempo, seu Dió se viciou nos folhetins como, quando, religiosamente, saía ao menos duas vezes por semana para caçar. A nova rotina começava pouco antes das seis - hora em que o jantar já estava aprontado no fogão a lenha prestes a ser servido. Com os olhos fixados na televisão, a direção da colher cheia de feijão com farinha não perdia o rumo à boca.

Tieta do Agraste tornara praticamente amiga íntima de seu Dió. Senhorzinho Malta, nem se fala. Ruth e Raquel só perderam sua referência aos papéis de Glória Pires depois que Norma (de Insensato Coração) ficou mais evidente que as irmãs gêmeas de Mulheres de Areia. E anos a fio seu Dió estacionara no sofá por algumas horas. Acatava a chegada do Jornal Nacional esperando logo seu final para a chegada da novela das 8 que se mudara às 9 temporada adiante.

Depois que trocou a sala de aula pela sala de estar de casa, de fato seu Dió mostrou-se que não conseguira mais viver sem as histórias alheias que apontavam no mesmo horário a partir das seis horas da tarde. Era Jade, Maya... Ainda bem que sua esposa, dona Aliça, com quem já comemora bodas de ouro, não se intimidara, juntando-se ao marido para assistir aquele Ti-Ti-Ti todo.

sexta-feira, 2 de setembro de 2011

O orelhão se aposentou



Uma coisa é certa: o orelhão parece ter se aposentado. Se num passado não tão distante esse aparelho telefônico público era alvo de filas extensas por moradores que ficavam minutos à espera de sua vez, hoje essa é uma realidade inimaginável.

A pernambucana Maria Alves que o diga. Assim que chegou a SP, lá nos altos dos anos 90, ansiava por sua vez em longínquos à utilização do orelhão, quando não desistia, e decidia enviar uma carta pelos Correios - que demorava semanas até chegar na zona rural de onde saíra há alguns anos.

Hoje, esse cenário não faz mais parte da realidade de Maria _como da grande maioria de moradores nas metrópoles da vida_ que se deslocavam de suas terrais natais, lá dos confins nordestinos, e dependiam dos orelhões para a comunicação com os entes queridos. Por causa da internet e dos planos acessíveis das operadoras de telefonia fixa e móvel, as filas no orelhão, ou as cartas, parecem ter ficado no passado.

E todos os dias Maria, agora, fala com sua mãe dona Antônia. Antes, o sofrimento era para comprar as extintas fichas de orelhão e depois os cartões telefônicos de 20, 30, 40 e 50 unidades_ quando o dinheiro sobrava. Toda a parentada se reunia para ir ligar pros familiares. Era tia, prima, sobrinho: todos queriam falar um bocadinho com aqueles que ficaram para trás.

Impossível era não ouvir a conversa alheia. Quase que naturalmente todos berravam ao telefone. Não sei se por problema de audição, ou uma lamentável herança genética, ali estavam aquelas pessoas contando suas histórias. O próximo da fila - e principalmente o último - prestes a dar um treco de nervosismo, pois o ligador da frente dissera um "tchau" pela 12ª vez, e o cartão de 40 unidades parecia ter o quádruplo de créditos.

Hoje, embaixo de seu cobertor, sem filas, sem auditório, as pessoas falam "infinity" em seus aparelhos celulares, o orelhão vive solitariamente nas esquinas da cidade, feliz, ou infelizmente, acompanhado apenas das garotas de programas e travestis, que o utilizam às madrugadas para pregar adesivos com anúncios de serviços sexuais.