A batideira no coração
A única coisa que eu sei é que o que não estava na garantia era o fone de ouvido do meu MP3. Lixo. Coisa barata. Porcaria mesmo. Depois que o original quebrou, e tive que comprar um “novo”, na 25 de março, deu nisso: tempo limitadíssimo de uso.
Mas não pude imaginar que seria tão restrito assim. Foram 2 horas e 20 minutos de utilização. De quando sai da barraca de tranqueiragem eletrônica do camelô e perambulei um bocado, apreçando outros produtos por ali, até meu assento no banco superior do ônibus articulado, o popular ônibus-sanfona, saindo da Rua Coronel Xavier de Toledo, no Anhangabaú, sentido Terminal Campo Limpo.
Falar alguns palavrões ou esforçar-se com um pouco mais de fé para que aqueles fiozinhos retornassem à funcionalidade, talvez seria assinar em demasiado o termo de pobreza, mas entre o derradeiro fio de esperança e incredulidade habitando o mesmo ínterim, larguei-o de lado, em definitivo, depois que notei a presença de ruídos femininos advindos por detrás de mim, já adentro do coletivo.
Era a voz de uma mulher. Tom sombrio naqueles murmúrios de tristeza e apreensão. Não pude enxergar-lhe a fisionomia, a não ser se inclinasse para trás o pescoço, porém decerto acordaria o senhor ao meu lado que ensaiava os primeiros roncos, embora a contorção do ônibus-sanfona e o sol da tarde paulistana que batia diretamente em sua cara.
- Ana, é você?! – deu início àquela que seria a primeira ligação da mulher. - Que bom que você atendeu! Estou a caminho de casa, mas não sei se vou chegar... – após a primeira expressão de dor figurada pelo "ai", uma breve pausa no diálogo. - Comecei a sentir umas coisas estranhas. Uma batideira forte no coração. Só quero que avise a Emanuel que guardo um envelope marrom, no lado esquerdo, no fundo do armário, por baixo de uma sacola cheia de linhas de tricô. Caso eu demore a chegar, diga-o sobre o envelope.
A mulher encerrou a chamada. Um silêncio momentâneo foi quebrado pelo segundo “Alô”, dois minutos depois.
- Juninho?! – não fora Juninho quem atendera de imediato o telefone. - Chame o Juninho, por favor, Patrícia. Careço falar com certa urgência com ele – um minuto foi o tempo em que a respiração ofegante da mulher deu lugar ao retorno do falatório, balbuciando seu segundo "ai". - Filho, talvez eu demore um pouco a chegar em casa, ou quem sabe até bastante tempo, mas caso isso aconteça, por favor, pegue um documento. Um envelope amarronzado, na terceira parte do armário, do lado esquerdo, embaixo de uma sacola com linhas de tricô – o filho provavelmente questionou as razões pelas quais a mãe tardaria a chegar em casa. - Não, filho, não sei se mamãe vai demorar, talvez sim, talvez não – justificou ela.
Agora, a terceira ligação seria para Maria, ao menos este foi o nome ao qual a mulher referiu-se , no início do telefonema. – Maria, é você?! Amiga, preciso te falar uma coisa... Tô sentindo um troço estranho. Uma batideira no coração. É uma dor no peito. Tô com medo de enfartar aqui dentro desse ônibus – e novamente a mulher comentou acerca do tal envelope, e exprimiu seu terceiro "ai". – Maria, liguei pro Juninho e pra Ana, para que eles pegassem o envelope que deixei no armário. Vai que não chego viva em casa. E como não contei anteriormente sobre isso, não quis me hesitar dessa vez, já que é a quinta batideira que tenho essa tarde, sem contar as muitas, durante as derradeiras semanas - Maria provavelmente indagara-lhe algo. – Sim. É o envelope ao qual comentei com você há algum tempo.
Nessa altura do campeonato, mediante a conversação daquela mulher em que mal sabia como era o rosto, quem estava prestes a sentir uma tal batideira seria eu. Aproxima-se meu ponto de desembarque, no ponto do corredor Faria Lima, em Pinheiros, encaminhando-me posteriormente ao meu segundo transporte coletivo para que enfim chegasse em casa.
E nada de ela falar, dizer, mencionar (ou qualquer outro adjetivo em referência ao verbo "revelar") anunciando o conteúdo daquele bendito envelope marrom embaixo das sacolas de tricô, no armário em sua casa.
Quando já perdera a esperança, da mesma forma que perdi quando o fone de ouvido que comprei na 25 não teve mais solução, a mulher murmurou baixinho, intrigada: Se eu morrer, quanto será que eles irão receber com o seguro de vida que fiz?! Poderia ter checado isso antes!
Levantei-me de meu assento, enquanto o senhor, companheiro de poltrona, despertara somente após o cutucão que lhe dei, em seguida ao meu pedido de "com licença".
Espichei o olhar, em busca da mulher que deixara guardado o “seguro de vida”, que ao sentir uma batideira no coração preocupara-se em deixar a família a par do documento. Belos olhos esverdeados um tanto que miúdos, longos cabelos lisos, de cor castanho-claro, uma jovem senhora de não mais do que 45 anos, bem apresentável com o vestido florido, justo ao corpo franzino, e por todo esse contexto, nem de longe ostentava algum indício de que a qualquer momento teria um piripaque.
Mas como diz o ditado: "quem vê cara não vê coração". E nesse caso, quem observava aquela mulher não imaginava que ela pudesse enfartar por ali mesmo.
Mais um drama, mais uma crônica vivida e vivenciada corriqueiramente nos ônibus-sanfona da vida, no qual os passageiros são os cantores que tocam e cantam suas próprias histórias.