"Enquanto inúmeras mulheres renegam qualquer aparato doméstico ao não permitirem ser retratadas como 'donas do lar', Vera não sonhava em vestidos novos, pares de sapatos, produtos de beleza ou bijuterias... Apenas o fogão à gás que outrora vira numa loja e, que entretanto, pudera somente admirar."
Uma mulher:
Vera Lúcia
Um cenário:
Cavada II - minúsculo povoado há 40 km de Vitória da Conquista - BA
A dois meses de seu aniversário, num dia como tantos outros de temperatura intensa no povoado de pouco menos de mil habitantes, ela, Vera Lúcia - ou simplesmente Vera -, no prepúcio daquela tarde, do dia 04 de janeiro de 2007, me contara seu sonho...
Sorriso fácil de ganhar era o dela. Simpatia em pessoa. Carisma, ela esbanjava simplesmente. Pele clara. Cabelos loiros de natureza, porém superficialmente tingidos de um de castanho escuro. Pouco mais de 1,60 de altura, num corpo que beirava os 71 quilos. Físico esbelto ela nunca tivera. Embora os 31 anos de idade parecessem dar espaço a um aspecto de 40.
A vaidade talvez fora perdida ao decorrer da vida como lavradora. Os anos de colheita de café e serviços árduos na lavoura entregavam nas mãos ásperas e calejadas à realidade vivida desde sempre. A necessidade do trabalho na roça havia obrigado Vera a trocar o lápis e o caderno pela enxada já aos 14 anos de idade.
Ela era a número 3, dos cinco filhos de seu Antonio Mota. Um paraibano que fugira com a mãe da protagonista dessa história, em meados da década de 70, quando o casal se conhecera em Campina Grande, caindo de paraquedas - ou, de mala e cuia - na Bahia. A herdeira dos olhos cor de mel e da pele branca do patriarca da família, fora retirada do clã aos 19 anos, quando se casara com José Carlos.
O vestido branco, contrastante com as madeixas coloridas com de preto nessa na época, compunha o look de Vera quando trocou alianças com o pai do filho que esperava em seu ventre.
Julgamentos e conservadorismos à parte, Vera havia tornado-se notícia corrente na região, quando souberam de sua gravidez antes de estar casada.
Os premoldes sociais eram rígidos, ora intoleráveis, em pleno século XXI, no alto do ano de 1998.
E ela então me contara acerca de seu sonho...
Um fogão. Essa caixa de metal cujo fogo seria aceso por intermédio de um botijão de gás. Tudo que ela mais queria era ornamentar sua cozinha com um fogão de dois pares de bocas. Ela ansiava acionar o isqueiro em direção à abertura dos tubos interligados à caixa de ferro que liberavam o combustível aguardando a combustão, e assim originando a pequena chama vermelha do fogo manisfestar-se, acendendo mais do que a chama do combustível, mas a de sua doce ambição.
Construído há pouco tempo, na extensão que fizera da cozinha, ainda de chão batido, à direita, encostado ao lado porta da cozinha ficava o fogão à lenha: três bocas superiores numa chapa de alumínio estirada naquele amontoado de blocos.
Empilhando a lenha de café seco sob um calor do Sol escaldante das três horas da tarde, comprada na derradeira semana de dezembro, que ao ser retirada do caminhão fora colocada aleatoriamente nos fundos de sua casa embaixo de um pé de jaca, Vera relatava-me seu sonho...
Toda a madeira que o caminhão trouxera, abasteceria o fogão à lenha feito de alvenaria, responsável pela fabricação dos alimentos de Vera por alguns meses. Uma pequena quantidade de lenha, já cortada, era abrigada dentro de casa. Se a chuva apontasse de surpresa, não seria fácil fazer a lenha molhada do relento virar chama.
Enfileirar os paus secos verticalmente a
umentava a longevidade da lenha, que, se permanecida de maneira horizontal, apodreceria com maior rapidez.
E ali, amontoando todos aqueles galhos que, ora ou outra machucavam suas mãos, ela ainda exclamava-me seu sonho...
O ritual de Vera repetia-se às 7 da manhã, quando normalmente levantava-se após o canto do galo - que havia dado sinal de sua existência há algumas horas. Separar os gravetos, os menores e mais finos possíveis para que fosse simples, ou menos complicada, a combustão da lenha era o exercício desta mulher todas as manhãs.
O querosene regado às tiras de madeira inseridas no fogão daria lugar às chamas, assim que a filha de seu Antonio acendesse o fósforo e o atirasse em direção aos pedaços da lenha miúda.
Sopro, sopro... Um pouco mais. Às vezes, mais do que questão de habilidade era sorte, como ela dizia, "fazer a lenha pegar [fogo]". Nem sempre o lume nascia ligeiramente. E quando as labaredas despontavam as panelas - normalmente pretas de carvão, após poucos minutos sobre a chapa de alumínio -, entregavam o poder de um fogão à lenha.
A cor (embora eu soubesse que ela gostava do branco). O design do eletrodoméstico (embora eu soubesse que ela apreciava um com um espaço suficientemente grande para caber duas formas medianas de bolo). Novo ou seminovo (embora eu soubesse que ela admirava um forno potente).
Detalhes que, tampouco importavam para ela (ao menos é o que suspeito - ou suspeitava), naquele instante em que me comentara acerca do seu desejo, tão banal para muitos, e não vislumbrado por ela.
E Vera com o sorriso estampado na face de mulher guerreira, em oposição aos olhos claros marejados durante seu relato sonhava com o que muitos veem como um mero item doméstico. Enquanto ela percebia como a realização de um sonho, mais do que um sonho de consumo: um sonho de menos dificuldade para alguém que já tivera tanta, e que, no entanto, restringia-se às condições financeiras que não permetiam tornar tangível o tal sonhado fogão à gás.
Fogão a lenha
Ingrid, filha de Vera
"Encontrava-me de férias na Bahia quando fui cúmplice da história de Vera. Lá permaneceria por quinze dias, ou para ser mais exato, 13. Dois deles seriam gastos, um na ida e outro na volta, - perdidos, honestamente falando -, nas 48 horas que passaria dentro de um ônibus, no percurso de quase mil e quinhentos quilômetros os quais separavam a quinta maior cidade do mundo - São Paulo - da inóspita e minúscula Cavada II - minha terra natal. Mais do que proporcionar rapidez ao cozinhar os alimentos que Vera e sua família consumiriam num fogão à gás seria saciar a maior de todas as fomes: a fome de um sonho”.