segunda-feira, 16 de novembro de 2009

Baianês e carioquês: dois sotaques e uma grande amizade


“Um homem de pouco mais de vinte anos defronte a uma menina que beirava os quarenta. Eu contara de mim, na medida em que ela revelava um pouco de suas experiências, da sua trajetória. Para ela eu era o ‘Oxe’, enquanto pra mim ela era o “ Mesmo” - detalhe: a letra 's' com som de 'sh’. Nas palavras em que não cabiam de tantos 's', eu não perdia a piada e pedia: “ Meu Deus Jô, se sintoniza aí”.

A popular Jô, a mineira de nascença apenas, pois é a carioca mais carioca que conheço, foi a
pessoa a qual partilhei em pouco mais de um semestre vivências suficientes para arraigar uma amizade que se estende tão lindamente, a ponto de que as próximas linhas sejam dedicadas ao relato da incrível amizade entre um jovem baiano e uma linda carioca.
A fervorosa região de comércio do Brás foi palco para eu conhecesse e estabelecesse relações, mesmo que essencialmente efêmeras, entre múltiplas pessoas às quais tive o privilégio de “esbarrar” durante o tempo em que lá estive trabalhando.

O Shopping Popular da Madrugada - a “Feirinha da Madrugada”, chamada pelos íntimos - serviu de cenário para que eu tivesse o privilégio de conhecer uma das pessoas mais marcantes que cruzaram meu caminho.
Os óculos ray-ban enfeitavam o rosto da mulher que vinha em direção à lanchonete onde eu trabalhava como operador de caixa.

Ela estava de cabelos soltos, trajava uma calça jeans e uma blusa aberta de cor preta. Os pés estavam cobertos por um tênis Nike.

Ela, enfim, parou em frente ao caixa sem fila e logo disparou o pedido:
- Um misto quente e um café com leite, por favor!

- Você é carioca, né!? – indaguei-a, em seguida, ao detectar um sotaque diferenciado.

Sem entender nada, e um pouco espantada, ela respondeu, questionando a minha pergunta:

- Sim. Por quê? – disparou ela.

- Percebi pelo sotaque. – simplesmente argumentei.
Minutos depois de pronto, ela apanhou o lanche e o copo de café com leite e retirou-se da lanchonete.

Essa entrevista direta era normal para mim, que não me cansava de confirmar a origem daquelas centenas de pessoas que por ali passavam diariamente.
Desde às 3 da manhã trabalhando... Às oito, uma pausa para descansar. Sem rumo, eu saía num percurso aleatório, apenas para contemplar a diversidade de produtos espalhados pelo Shopping Popular da Madrugada, (já que dinheiro para comprar, embora os valores fossem bastante acessíveis, era indisponível naquela ocasião).

Numa dessas caminhadas diárias, percebo que aquela mulher – a carioca que outro dia havia passado no caixa - trabalhava numa banca de roupas masculinas.

Não me contive, e agora fazia-me cliente ao aproximar dela e perguntar o valor das bermudas penduradas nuns cabides, na parte exterior do local.

A única informação que possuía era que ela era do Rio de Janeiro – ao menos o sotaque era -, como de fato foi confirmado no meu momento "repórter do caixa" - e olha que nessa época eu ainda não cursava Jornalismo, talvez aí os indícios.
Em poucos minutos de prosa descobri que ela era natural de Minas Gerais , e da terra do pão de queijo viera somente ao mundo mesmo, pois considerava-se “carioca da gema” (evidentemente, pois o sotaque perfeitamente.)

Ela era da cidade do Cristo Redentor, enquanto eu da terrinha do vatapá e acarajé.

Embora tivesse sido graduada em Jornalismo, a carioca era vendedora de trajes masculinos: bermudas e camisetas, numa banca que não ficava a uns 20 metros de onde eu trabalhava.

A Jô, ou formalmente dizendo, Joelma Toledo, havia chegado aquela semana mesmo em São Paulo, seu irmão havia comprado um ponto comercial na “Feirinha” para a divulgação da marca que ficava no Rio de Janeiro.
Estávamos frente à frente: nordeste e sudeste, os estereotipados "preguiçoso" e "marrento".

O “O que há meu rei?!” e o “E aí cara?!”.

Enfim, o baiano de duas décadas de vida defronte a carioca de 39 anos.

Assim como no requerimento dela dias antes, no “misto” - palavra essa que ela pareceu ter pronunciado uns dez 's' -, o meu sotaque logo foi reparado por ela, no momento em que soltei pela primeira vez o “Oxe!?”, meu usual termo de espanto, admiração, contemplação etc, etc.

A química foi imediata.
Dois indivíduos de regiões tão distintas, com características ímpares e peculiares, cultura e sotaques opostos, estavam naquela ocasião compartilhando algo que não tinha distinção: o encanto de um mesmo sorriso e o prepúcio de uma amizade que não teria divergência, embora faixa etária ou origem.

A maneira a qual se pronunciavam as palavras não teria a mínima importância naquela ocasião e em todas as que estariam para acontecer.

O baianês e o carioquês: dois sotaques na terra de todas as “gentes”.
Indiscutivelmente a simpatia e espontaneidade foram as coisas que mais me cativaram naquela linda mulher.

Na mesma semana foi feito por ela um convite para o "open house". Claro, não recusei. Comes e bebes foram detalhes mediante a sintonia incrível que vemo-nos inseridos.
Era num apartamento modesto alugado pelo irmão que custeava os gastos com hospedagem, que foi feita a festinha inaugural. Ela veio do Rio de Janeiro com Renato, amigo de longa data, considerado por ela, seu ‘braço direito’.

Não eram gastos mais do que cinco minutos da "Feirinha" ao apê dela.

E muitas vezes estive por lá. Pizzas, cervejas e muita discontração compunham o cenário de diversão que nos rodeava.

Jamais esquecerei o frango ensopado divino que ela fazia as vezes que eu almoçava lá.
E aos poucos, o que seria um contato efêmero entre um operador de caixa e uma cliente, tornou-se num vínculo fraterno formidável.

Ficávamos por horas conversando quando eu saía no meu horário de descanso no trabalho à banca dela ou quando ia passar o dia na casa dela.

Embora a certeza do carinho da carioca tinha pelo jovem amigo baiano, a convicção foi intensificada, quando, sem pestanejar, ela me acolheu de braços abertos em seu apartamento.

Não, não estava indo morar lá. Digamos que um hóspede, apenas à metade do dia.

Muito contente em ter conseguido ingressar na faculdade dum curso que eu admirava muito: Letras - ainda naquele ano - a felicidade tornou-se completa, quando consegui a tão sonhada bolsa de estudos em Jornalismo na Universidade Presbiteriana Mackenzie.
Trabalhar de madrugada e estudar a tarde eram duas tarefas que não estavam casando bem pela incompatibilidade de horários.

Sair do trabalho às 11, da região central de São Paulo e regressar até a zona sul onde eu morava ,para almoçar e tomar banho, para em seguida, retornar ao centro, onde eu estudava, era uma tarefa difícil para quem teria de chegar à faculdade às 13 horas.

E no instante que achei que as coisas estivessem mais complicadas – como de fato estavam - ela, a Jô, soltou a frase que ainda soa hoje nos meus ouvidos com tamanha gratidão:
"Onde come um, comem dois”.

E todos os dias, eu partia do meu trabalho, às onze da manhã, me encaminhando direto pro apê dela.

... Uma toalha já pendurada no varal à minha espera pro banho, e em seguida, já posta a mesa com o almoço para mim.

Uma amizade que preço nenhum pagaria. Uma amizade linda com a carioca mais espetacular que cruzara meu caminho.

Uma atenção a qual ninguém havia me dado antes. E aquela mulher, que há pouco era uma mera desconhecida, naquele momento me acolhia aos seus dias sem pedir nada em troca.
Mas viver em São Paulo havia se tornado difícil para ela, quando seis meses após chegar na capital, ela voltou a Paracambi, cidade que viveu por toda a vida.

Pressão familiar, entre outras coisas, a fizeram regressar ao lugar da origem do sotaque que marcou tanto meus dias.

Mais do que compor uma narração para sintetizar o que ela foi para mim, é declarar que ainda é possível sim, encontrar pessoas com caráter, simplicidade e verdadeiras amizades.
A saudade existe, é concreta, mas a certeza do sentimento puro e verídico é o que permanece, embora a distância.

Recado: "E, Jô, mesmo que não consiga sua participação no Faustão (um causo particular), saiba que num lugar para sempre terá um local exclusivo: meu coração.
Agradecer toda a força, carinho e atenção é o mínimo mediante a toda ajuda que ela me deu quando eu precisei, mediante a amizade que temos."

terça-feira, 20 de outubro de 2009

Um fogão a gás




















"Enquanto inúmeras mulheres renegam qualquer aparato doméstico ao não permitirem ser retratadas como 'donas do lar', Vera não sonhava em vestidos novos, pares de sapatos, produtos de beleza ou bijuterias... Apenas o fogão à gás que outrora vira numa loja e, que entretanto, pudera somente admirar."


Uma mulher:
Vera Lúcia

Um cenário:
Cavada II - minúsculo povoado há 40 km de Vitória da Conquista - BA


A dois meses de seu aniversário, num dia como tantos outros de temperatura intensa no povoado de pouco menos de mil habitantes, ela, Vera Lúcia - ou simplesmente Vera -, no prepúcio daquela tarde, do dia 04 de janeiro de 2007, me contara seu sonho...

Sorriso fácil de ganhar era o dela. Simpatia em pessoa. Carisma, ela esbanjava simplesmente. Pele clara. Cabelos loiros de natureza, porém superficialmente tingidos de um de castanho escuro. Pouco mais de 1,60 de altura, num corpo que beirava os 71 quilos. Físico esbelto ela nunca tivera. Embora os 31 anos de idade parecessem dar espaço a um aspecto de 40.

A vaidade talvez fora perdida ao decorrer da vida como lavradora. Os anos de colheita de café e serviços árduos na lavoura entregavam nas mãos ásperas e calejadas à realidade vivida desde sempre. A necessidade do trabalho na roça havia obrigado Vera a trocar o lápis e o caderno pela enxada já aos 14 anos de idade.

Ela era a número 3, dos cinco filhos de seu Antonio Mota. Um paraibano que fugira com a mãe da protagonista dessa história, em meados da década de 70, quando o casal se conhecera em Campina Grande, caindo de paraquedas - ou, de mala e cuia - na Bahia. A herdeira dos olhos cor de mel e da pele branca do patriarca da família, fora retirada do clã aos 19 anos, quando se casara com José Carlos.

O vestido branco, contrastante com as madeixas coloridas com de preto nessa na época, compunha o look de Vera quando trocou alianças com o pai do filho que esperava em seu ventre.
Julgamentos e conservadorismos à parte, Vera havia tornado-se notícia corrente na região, quando souberam de sua gravidez antes de estar casada.
Os premoldes sociais eram rígidos, ora intoleráveis, em pleno século XXI, no alto do ano de 1998.

E ela então me contara acerca de seu sonho...

Um fogão. Essa caixa de metal cujo fogo seria aceso por intermédio de um botijão de gás. Tudo que ela mais queria era ornamentar sua cozinha com um fogão de dois pares de bocas. Ela ansiava acionar o isqueiro em direção à abertura dos tubos interligados à caixa de ferro que liberavam o combustível aguardando a combustão, e assim originando a pequena chama vermelha do fogo manisfestar-se, acendendo mais do que a chama do combustível, mas a de sua doce ambição.

Construído há pouco tempo, na extensão que fizera da cozinha, ainda de chão batido, à direita, encostado ao lado porta da cozinha ficava o fogão à lenha: três bocas superiores numa chapa de alumínio estirada naquele amontoado de blocos.

Empilhando a lenha de café seco sob um calor do Sol escaldante das três horas da tarde, comprada na derradeira semana de dezembro, que ao ser retirada do caminhão fora colocada aleatoriamente nos fundos de sua casa embaixo de um pé de jaca, Vera relatava-me seu sonho...

Toda a madeira que o caminhão trouxera, abasteceria o fogão à lenha feito de alvenaria, responsável pela fabricação dos alimentos de Vera por alguns meses. Uma pequena quantidade de lenha, já cortada, era abrigada dentro de casa. Se a chuva apontasse de surpresa, não seria fácil fazer a lenha molhada do relento virar chama.

Enfileirar os paus secos verticalmente a
umentava a longevidade da lenha, que, se permanecida de maneira horizontal, apodreceria com maior rapidez.

E ali, amontoando todos aqueles galhos que, ora ou outra machucavam suas mãos, ela ainda exclamava-me seu sonho...

O ritual de Vera repetia-se às 7 da manhã, quando normalmente levantava-se após o canto do galo - que havia dado sinal de sua existência há algumas horas. Separar os gravetos, os menores e mais finos possíveis para que fosse simples, ou menos complicada, a combustão da lenha era o exercício desta mulher todas as manhãs.

O querosene regado às tiras de madeira inseridas no fogão daria lugar às chamas, assim que a filha de seu Antonio acendesse o fósforo e o atirasse em direção aos pedaços da lenha miúda.

Sopro, sopro... Um pouco mais. Às vezes, mais do que questão de habilidade era sorte, como ela dizia, "fazer a lenha pegar [fogo]". Nem sempre o lume nascia ligeiramente. E quando as labaredas despontavam as panelas - normalmente pretas de carvão, após poucos minutos sobre a chapa de alumínio -, entregavam o poder de um fogão à lenha.

A cor (embora eu soubesse que ela gostava do branco). O design do eletrodoméstico (embora eu soubesse que ela apreciava um com um espaço suficientemente grande para caber duas formas medianas de bolo). Novo ou seminovo (embora eu soubesse que ela admirava um forno potente).

Detalhes que, tampouco importavam para ela (ao menos é o que suspeito - ou suspeitava), naquele instante em que me comentara acerca do seu desejo, tão banal para muitos, e não vislumbrado por ela.

E Vera com o sorriso estampado na face de mulher guerreira, em oposição aos olhos claros marejados durante seu relato sonhava com o que muitos veem como um mero item doméstico. Enquanto ela percebia como a realização de um sonho, mais do que um sonho de consumo: um sonho de menos dificuldade para alguém que já tivera tanta, e que, no entanto, restringia-se às condições financeiras que não permetiam tornar tangível o tal sonhado fogão à gás.

Fogão a lenha















Ingrid, filha de Vera


"Encontrava-me de férias na Bahia quando fui cúmplice da história de Vera. Lá permaneceria por quinze dias, ou para ser mais exato, 13. Dois deles seriam gastos, um na ida e outro na volta, - perdidos, honestamente falando -, nas 48 horas que passaria dentro de um ônibus, no percurso de quase mil e quinhentos quilômetros os quais separavam a quinta maior cidade do mundo - São Paulo - da inóspita e minúscula Cavada II - minha terra natal. Mais do que proporcionar rapidez ao cozinhar os alimentos que Vera e sua família consumiriam num fogão à gás seria saciar a maior de todas as fomes: a fome de um sonho”.