terça-feira, 23 de agosto de 2011

1991

Na saída de Paraisópolis, segunda maior região periférica de SP, depois de voltar de uma apuração pro Blog Mural; de longe, já na avenida Giovanni Gronchi, próximo aos prédios luxuosos do bairro elitista, luzes piscavam simetricamente de duas motocicletas estacionadas na rua paralela à qual eu me dirigia. Os veículos estavam parados pouco abaixo do ponto de ônibus. Chegando mais próximo, o branco e o preto compunham a coloração dos veículos. Eram de dois policiais civis, devidamente fardados.

Em frente aos homenzarrões, praticamente escondido, estava um garoto de pele tão escura quanto a ausência de iluminação daquela rua. Como rugidos de rotwailers intimidando um cão vira-lata, os guardas dirigiam-se ao moleque posicionado de braços estirados ao gigantesco muro de um edifício. Pediam-no para “abaixar guarda”, para manter-se "pianinho".

À tira colo, os policiais estavam munidos com porretes nas mãos e "porradas" na boca. O pisca-alerta iluminava, mais do que a abordagem, a tensão do garoto que atropelava as palavras a cada interrogação lhe feita.

- Anda, fala agora... Diz logo, rapaz! – oprimiam-no os policiais.
- 199... – engasgando, o menino tentava responder.
- Agora! Fala, rápido, fala o ano que você nasceu – rugiam em direção ao garoto.
- 1991 – disse, fixando o olhar perdido ao concreto.

Minha "lotação" chegou. Adentrei o carro, seguindo o destino de minha casa. Com a revelação da maioridade do rapaz, mirando pelo parabrisa do ônibus àquela apreensão, o que me intriga até hoje é incerteza de não saber qual foi o destino daquele menino.

Leia também os Vigilantes do Tráfico

domingo, 21 de agosto de 2011

Operando o caixa

Meu ofício como operador de caixa foi um teste de resistência. Primeiro, por lidar com tanto dinheiro como qual sabia que ficaria com uma fatia irrisória no final do mês. Segundo, e principalmente, por ter que administrar não apenas o montante, mas a paciência diária naquele recinto.

Imagine acordar às 2h da madruga para ir trabalhar no Brás, saindo da zona sul de São Paulo; adentrar um caixa, e, uma hora depois, deparar-se com a total ausência de dinheiro trocado. Essa era minha situação, lá no alto do ano 2008. Dinheiro miúdo – como notas de 1 e 2 reais, além de moedas - era raridade no Café do Trilho.

Ironicamente, o proprietário do estabelecimento era bancário. Mas convencer ao gerente que num comércio onde se predomina a compra atacadista é importante a concentração de dinheiro miúdo parecia inútil. Fato: ele era incompetente. Ganhava seis vezes mais do que aqueles que madrugavam, e sequer conseguia administrar um trailer que vendia café e pão na chapa.

Falando em cafezinho... Tomar um cafezinho de cinquenta centavos, oferecendo uma nota de 5 reais? Impossível no Café do Trilho! Em poucas horas de trabalho, todo o dinheiro trocado esvaia-se daquela gaveta, para meu desespero.

Uma placa do lado de fora do estabelecimento - especialmente confeccionada por mim - fixava o anúncio: “Por favor, facilitem o troco!”. Mas como? – pensava eu -, se os próprios comerciantes da Feirinha estavam em busca de míseros trocados para seu negócio.

Ser tolerante era uma tarefa diária. Eu tentava ser ao máximo. Até que a discussão com os clientes passaram a se tornar rotineiras. Tudo pela falta de dinheiro. Em pouco tempo, ei-me lá, fazendo um novo cartaz: “Vendas apenas com dinheiro trocado!” O que me caberia fazer se não havia troco no caixa? Passar a ficha e descontar do meu salário? Jamais!

Assim que chegava alguém, eu já alarmava: “Tá trocado?”. Mesmo com a resposta evidente do “Não!”, eu lamentava a situação e retrucava: “Eu também não tenho”. O cliente insistia: "Vai deixar de vender?". Eu dizia que "infelizmente sim". Trocentas vezes havia alertado ao gerente, mas como nunca tomava providência. A insistência e indignação por parte dos fregueses eram justas, mesmo que não fosse minha a culpa. E o “pato” quem pagava? Sempre eu.

  • Reclamações do preço dos produtos
  • Inconformidade com a qualidade dos lanches
  • Demora no atendimento
  • Para quem sempre caía o “esporro”? Pro coitado do operador de caixa.

Intolerância e falta de estrutura de um estabelecimento que não conseguiu ser bem gerenciado, o resultado: “passa-se o ponto”. E de lá, em 8 de dezembro de 2008, resisti à luta - assim como os demais funcionários - que, por hora, não tinham como conseguir outro emprego.

Foi uma experiência incrível. Aprendi a fazer alguns lanches (risos). Convivi com pessoas de todas as partes. Japoneses chatos. Bolivianos amáveis (e vice-versa). Coreanos abrasileirados. Brasileiros irritados com a falta de troco. E, claro, com o dissabor de acordar às 2 horas da manhã para trabalhar 8 horas por dia e ganhar 400 reais mensais.

Quase fui parar na delegacia depois de uma hora de discussão, o cliente me acusando de ter passado o troco errado de um cartão telefônico (15 reais fariam muita diferença para mim). Já sai aos berros com uma senhora que após comprar um café de 50 centavos com uma nota de 50 reais, alegou estar uma porcaria a bebida. Outra vez a cena foi com uma mulher, às 4h da madrugada, que queria fazer barraco por causa de 75 centavos; bradava que ligaria pro meu chefe para dizer que eu estava passando troco errado. Sugeri a ela que comprasse um auto-falante pra espalhar pra toda a Feirinha o ocorrido, senão mandasse o William Bonner anunciar no Jornal Nacional, assim todas as pessoas do Brasil saberiam do fato.

quarta-feira, 17 de agosto de 2011

Da tela do computador à sala de aula

alunos em frente ao painel do Vida em Crônicas

A professora de ensino médio trabalhou nas aulas de língua portuguesa, nos primeiros bimestres do ano letivo, a literatura de Machado de Assis, Eça de Queiróz, entre outros autores; no terceiro bimestre, o baiano Castro Alves perdeu a vez para um conterrâneo, que de longe não chega ao Navio Negreiro, mas carrega a grata coincidência do sobrenome de José de Alencar, e, aos 24 anos de idade, ganha espaço e reconhecimento nas salas de aula de ensino médio através das histórias da vida cotidiana que saem deste blog.

Painel "Mulheres da Cavada"

Em junho deste ano, no Colégio Estadual Vitória Lima de Oliveira, foi realizado projeto “Histórias e Vitórias de Barra Nova”. Cada turma de alunos encarregou-se de pesquisar uma vertente da história do Distrito. Entre histórias, perfis, personalidades... Eis ali, organizado pela turma 3º ano, o painel Vida em Crônicas – com perfil e até foto deste cara que agora vos escreve.

alunos visitam painés sobre arte e cultura de Barra Nova
A felicidade foi desmedida. O anúncio de que o Vida em Crônicas sairia da tela do computador para ser exposto num projeto que destaca a história daquele lugar tão especial foi surpresa e muita alegria. Mais tarde, ainda para completar todo esse contentamento, a notícia de que as crônicas deste blog serviriam também de tema para as aulas de língua portuguesa.

As classes receberam então um toque de localidade. Os alunos passaram a estudar mais do que a literatura brasileira de José de Alencar, mas também a literatura local de Vagner de Alencar. Passaram a adentrar as histórias das mulheres da Cavada, a re-visitar lugares já conhecidos.

Cartaz do projeto
As histórias cotidianas que carreguei na lembrança, hoje são também campo de estudo para esses alunos que estudam no chão de onde também saí. Impossível não diz expressar que essa é, sem dúvidas, a prova mais concreta de que essas histórias representam mais do que o retrato da minha história de vida, mas, especialmente, a de todas as narrativas nelas exploradas.

alunos do CEVLO em frente ao painel Recordações Históricas

Semana passada, meu irmão me chamou a atenção no chat: “Vagner, sabia que seu blog tá famoso na Bahia?”. Comentei sobre a exposição que havia rolado no colégio, apontando talvez esse o motivo do conhecimento de algumas pessoas do Vida em Crônicas, mas não, foi além. “O menino perguntou se eu era ser irmão. Ele disse que estão estudando seu blog nas aulas de português. Ele até disse que gostou daquele texto sobre mãe (veja aqui) e o enterro do periquito”.
painel com divulgação do blog Vida em Crônicas

“Por que você não vira escritor?”, indagou meu irmão. Respondi que já sou um escritor: “Quem escreve é escritor. Há aqueles que são famosos e os que não são”.


sexta-feira, 12 de agosto de 2011

A casa de farinha


Os homens se encarregavam de ir para a roça arrancar a raiz. Na cangaia encarcerada no topo do jegue, a mandioca era trasladada até a casa de farinha. Lá, a raspagem ficava por conta das mulheres, que de forma impressionante, sentadas no chão batido de terra, ao redor da mandioca estirada ao centro, a depilavam tão rapidamente quanto o triturador a devorava horas depois.

Era uma vez essa casa de farinha, assentada no terreno da casa de dona Aliça e “seu” Dió. Há alguns muitos anos, ela veio chão abaixo, décadas depois de erguida exatamente no mesmo lugar – no inóspito povoado Cavada II, no município de Barra do Choça (BA). Durante anos a fio, família, amigos, parentes e conhecidos jamais careceram pagar para consumir a tradicional farinha de mandioca.

Na casa construída de pau-a-pique, a força da roda ficava por conta dos machos que giravam-na acionando o triturador que transformava em massa a mandioca. E após todo o processo de feitura: trituração, prensa, cozimento… O alimento ganhava forma. Existiam aqueles que optavam pela farinha fina, enquanto outros prefiriam a grossa. O biju era imprescindível para o café no fim da tarde feito do pó batido no pilão de madeira, na cidade que é conhecida até hoje como “a terra do café”.

Se a farinha pareceu ter ficado nas origens ainda de uma agricultura de subsistência; Helenita, filha dos donos da extinta casa, hoje parece encarregar-se de resgatar a tradição. Defronte a sua casa, um cento de blocos dará lugar brevemente à construção de sua futura vizinha: a nova casa de farinha.

Texto escrito para o blog Novas Histórias

imagem retirada do Blog Godeirense

quarta-feira, 10 de agosto de 2011

Sampa

Por Henrique Pires

Na Avenida São João, me perco e percebo o quanto não sou paulista nato.
Nasci aqui, mas meu coração se criou no interior.
E é lá que ganhei esse costumeiro jeito de me importar com o que falo.
Não digo exatamente com a forma, mas dou validade o que pronunciou e tento ser coerente, na maior parte das vezes,
com o que exponho em forma de discurso.

A palavra na capital é mais perecível. Vive morrendo.
É breve como a espuma de um chopp.
Em Sampa, nos vendemos.
Nos vendemos em todos os sentidos.

Hoje habito num apartamento com janela para um parque,
e nessa semana fui acordado por periquitos.
Tantos anos no interior...
E não me recordo de tal despertador.
Ironia.
Na selva de pedra há, às vezes, a presença maior da natureza.

Nada me dá mais certeza de ter nascido aqui do que a Paulista.
Em seu percurso, sinto de uma forma íntima que sou filho dessa cidade.
Sempre acontece. Poderia dizer que é lá que me sinto pertencente aqui.
Mas esse pertencimento não é total
e quando me perco me vejo com saudades da minha outra mãe.

Não sou apaixonado por São Paulo.
Sou grato.
Ela me torna um filho mais independente e me faz enxergar vidas que não são minhas, algumas extremamente sofridas.
Ou o sofrimento é meu por não ver nelas a beleza que possuem.
É gente guerreira que aqui habita. É gente mais do que isso.
Eu sinto sempre que ando pela São João
um estranhamento e um contentamento que me faz permanecer aqui.

imagem: Pinacoteca do Estado

Leia também O enterro do periquito

quinta-feira, 4 de agosto de 2011

Um sonho colorido


Por muitos anos namorei todas aquelas caixas: umas mais simples, com 12 unidades; outras mais recheadas com 24, 36; e principalmente aquelas enormes, com 48. Havia tipos de tudo quanto é jeito: triangulares, de cores sortidas, cilíndricos, com bolinhas coloridas... Mas depois que descobri que após colorir com o grafite no papel, um pincel umedecido poderia dar uma tintura de aquarela... Pronto: esse se tornou o meu maior sonho infantil.

Tive que aquietar o facho e me contentar com aquelas caixas de lápis de cor vagabundas que minha mãe me comprava a cada ano letivo. De forma alguma, não consegui persuadí-la a me comprar uma caixa de lápis de cor da Faber-Castell. A propaganda na televisão alimentava, dolorosamente, ainda mais meus impulsos de consumista mirim; abortados por dona Osmilda que bradava um "não dá pra comprar esses lápis caros, menino!"

Enquanto apaziguava meu desejo, com o passar do tempo, apontavam mais e mais variedades de lápis de cor. Eram metálicos, caixas-kit: com direito a apontador, lápis preto e outros gueres-gueres.

No primeiro e único dia dos namorados que protagonizei até hoje, Aline – minha namorada na época – me sondou a respeito do presente que poderia me dar para celebrar nosso namoro. O que ela não imaginava era a minha sugestão: Que tal uma caixa de lápis de cor aquarelável? Preciso dizer que ela achou a recomendação um disparate? Agi apenas com o coração – decerto o coração do menino que sonhou a infância inteira em ter uma caixa de lápis de cor – , mas, claro, mesmo assim, ela achou a ideia descabida.

No dia 12 junho o presente recebido num embrulho super-requintado foi uma camiseta vermelha com mangas brancas. Linda. Mas a caixa de lápis de cor continuou guardada no meu estoque de presentes não obtidos.

Quando eu cursei a quinta série do ensino fundamental, a professora de educação artística me emprestou uma caixa de lápis de cor aquarelável – embalagem chique, metálica, grafites simplesmente macios através de uma coloração incrivelmente viva. No final do empréstimo, recebi a grata notícia da posse dos lápis.

Dez anos depois daquele tempo que usufrui dos lápis aquareláveis, apressei o valor de uma caix da Faber-Castel na Fnac da avenida Paulista: nada mais, nada menos do que 40 "mangos". Eram 48 unidades naquela caixa que coloria meus sonhos de menino-desenhista; do jeitinho que sempre sonhei levar um dia para casa. Com aquele pincelzinho na lateral direita da caixa e o famoso peixe estampado na embalagem.

Comprar ou não comprar? Não comprei. Ao menos, (ainda) não comprei. Não posso esperar surgir um novo namoro para ter, enfim, ter uma caixa de lápis de cor da Faber-Castell.

segunda-feira, 1 de agosto de 2011

Vaca amarela cagou na panela


No ônibus, dois garotos dividiam a poltrona com a mãe:

- Oooooh... Stop! - e as mãos miúdas se estendem em frente aos dois.
- A… B... C... D... E... F – contou os dedos o garoto sem óculos, até chegar à letra equivalente:
- Faca.
- Folha - contrapôs o irmão.

E a sequência de palavras lembráveis eram cantadas... Até vir novamente o “Oooooh... Stop!”, e uma nova letra.

- U - bravaram em coro.
- Urso.
No gaguejo: - U... Unha.

O estoque de palavras acabou. Por um momento, o silêncio pairou. A mãe entrou na brincadeira:
- Úrsula.

Eles se cansaram e a brincadeira foi então substituída. Joquempô: “Pedra-papel-tesoura”. A tesoura quebra a pedra. O papel envolve a pedra. A tesoura corta o papel...

E as brincadeiras que jamais pensei que duas crianças ainda tivessem na ponta de língua, prosseguem:

“Vaca amarela cagou na panela, quem falar primeiro come toda a bosta dela.” Os meninos cantarolam: “Vaca amarela cagou na panela, quem falar primeiro come toda a bosta dela!”

A mãe interveio:
- Não pode falar isso, Vinícius.

O filho retruca:
- Pode sim.

A mãe insistiu:
- Não pode. É feio.

O menino então deixou a mãe sem reação com a constatação:
- Mas é uma palavra.

A mãe se cala. E eles continuaram a canção.
Chegou a parada shopping Eldorado. A mãe desceu com os filhos. Enquanto isso, fiquei ali, impressionado.

É, de fato, os dois garotos, de 6 e 7 anos, provaram que, embora a predominância dos jogos virtuais, ainda existe um espaço as e tradição das velhas brincadeiras de criança.